(esta história deve ter sido contada por Candinho numa das primeiras gravações que fizemos, há uns 10 anos ou mais. Como o volume de material gravado é muito grande, ficou esquecida durante algum tempo... Quem se lembrou dela e a resgatou do poço das histórias quase esquecidas foi minha irmã, a Etel Frota, que precisava de uma história assim (assim como? - Assim como esta) para não sei bem qual objetivo. Não fiz muita coisa no texto dela, quase que só acrescentei uma introdução e um fecho e mexi um pouco em algumas construções de frases, sem grande motivo, só para ficar com mais cara de uma coisa que eu próprio teria escrito. O causo teria tudo para ser uma anedota, se não fosse uma tragédia... Chega de introdução. Vamos à triste história dos irmãos Alceu e Alfeu)...
Era domingo e a manhã já ia alta. A cidadezinha estava naquele silêncio, naquela pasmaceira... Movimento e ruído, só na Praça da Matriz e na igreja, onde os fiéis acorriam, conclamados pela voz metálica dos sinos que anunciavam as missas. Na casa de Cândido também estava tudo sossegado: o pai estava no barracão da serraria desde que o dia tinha clareado; Etelvina e Aurora já haviam assistido a primeira missa do dia com os dois mais novos e estavam na cozinha preparando o almoço – Aurora estava pondo o feijão para cozinhar e Etelvina preparava para fritar uns grandes pedaços de carne de porco, enquanto Candinho e Ides, sentados a um canto da mesa, desenhavam letras nas folhas de um caderno de caligrafia sob a supervisão das duas. Daniel e Valdemar estavam passeando na Praça da Matriz com outros garotos da cidade, olhando a saída da missa e já prestando a maior atenção nas meninas que por ali passavam com suas famílias. Era um domingo de sol, como qualquer outro, mais ou menos 10 da manhã, quando alguém chamou da frente da casa. Cândido foi atender e, pouco depois, entrou com o tio Euclides, irmão de Etelvina, que morava não muito longe dali, no bairro do Taquaral, e tinha resolvido, assim que acordara naquela manhã de domingo, que iria a cavalo até Santo Antonio da Platina para visitar a irmã, o cunhado e a sobrinhada, e filar uma bóia na casa deles. Pouco depois, quando Daniel e Valdemar retornaram de seu passeio, encontraram a cozinha cheia de gente, colocando a prosa em dia e bebericando café, todos conversando animados, menos os dois menores, que sabiam que não deviam se meter na conversa dos mais velhos, a não ser se fossem solicitados. Etelvina fritava a carne na grande frigideira de ferro e Aurora temperava o feijão sem deixarem de participar da animada conversação. Talvez tenha começado na mesa do almoço, talvez tenha sido depois que todos se levantaram, Candinho não sabe mais. Ele se lembra que o tio Euclides deu o arremate à narrativa na varanda, depois do cafezinho adoçado com rapadura. Era uma história que poderia até ser engraçada, se não fosse trágica. Havia acontecido pouco tempo antes, no Taquaral, onde o tio morava. Ele mesmo não havia presenciado os acontecimentos, mas ali era uma comunidade pequena, todos se conheciam e a história era, sem dúvida nenhuma, verdadeira.
Existiam muitos sitiantes naquele bairro, cada um tocando sua terrinha e suas atividades. Quando qualquer um dos proprietários dali se via às voltas com um excesso de trabalho provocado fosse pelo que fosse, ele promovia um mutirão para resolver o problema. Isso abreviava o tempo que seria gasto naquela tarefa e dava resultados muito bons em muito pouco tempo. Acontecia principalmente em épocas de colheita, ou quando o mato estava tomando conta das roças. O sitiante reunia todos os vizinhos, um trabalho conjunto de vinte, trinta, até mais pessoas; fornecia uma alimentação de sustança enquanto durasse o mutirão e até uma cachacinha ao final da empreitada.
Aquela foi a vez do senhor Cunha (mas como tinha gente chamada Cunha em Santo Antonio da Platina! – Será que eram todos parentes?) promover um mutirão reunindo a vizinhança, porque ele tinha passado um período enfermo e o mato estava tomando conta do seu cafezal. Lá compareceram Alfeu e Alceu, uma dupla de irmãos muito conhecidos na região. Alfeu era magrão e seco, queimado de sol, muito brincalhão, safado, sempre inventando histórias engraçadas e provocações. Alceu, ao contrário, era branco e um pouco rechonchudo, tímido, ingênuo e amedrontado. Tinha medo de tudo, mas, acima de qualquer outra coisa, tinha medo de cobra. Embora muito diferentes (ou talvez por isso mesmo) os irmãos eram inseparáveis. Não se desgrudavam de jeito nenhum e nunca brigavam. Estavam sempre juntos nas peraltices ou nas realizações do bairro. Frequentemente caçavam ou pescavam nos matos próximos e conviviam como os melhores amigos do mundo.
Eles atenderam ao chamado do vizinho e se empenharam na empreitada da limpeza e capina do cafezal. Depois de algumas horas o trabalho já ia adiantado e, em certo momento, o Alfeu se afastou um pouco, como se fosse procurar um lugar para fazer suas necessidades, mas o que ele tinha em mente era outra coisa: ele teve a infeliz ideia de pregar uma peça no irmão. Alfeu encontrou uma taquara, rachou-a e fez uma vareta de uns 40cm de extensão por 2,5 de largura. Em uma das extremidades recortou, com capricho de escultor, duas pontinhas agudas, a uns 2 cm uma da outra. Era, sem tirar nem por, a embocadura de uma cobra!
Alceu estava limpando o mato debaixo de um pé de café, agachado, quando o Alfeu veio por trás e cutucou com força o seu calcanhar com a vareta. O Alceu se apavorou, deu um pulo, gritou desesperado e cambaleou alguns metros, caiu sentado no chão e agarrou o tornozelo machucado. Com os olhos esbugalhados, pálido, viu os dois pontinhos de sangue onde a taquara o havia picado. Começou a gritar desvairadamente e a chamar por socorro, o que acabou atraindo o resto do pessoal que estava trabalhando próximo dali. Alfeu primeiro se fez de desentendido, fingiu que não era com ele; depois, assustado, foi apoiar o irmão. Olhando o estado do pobre, começou a achar, pela primeira vez na vida, que talvez tivesse ido longe demais e, embora estivesse quase arrependido, não desfez o que tinha feito. Aquilo não haveria de dar em nada e, se ele confessasse, poderia até ser agredido pelos outros ou pelo próprio irmão, com razões de sobra.
Uma turma levou o Alceu carregado para a casa do senhor Cunha, enquanto um dos homens picava carreira até Santo Antonio da Platina em busca do médico, Dr. Claremont. Deitaram o ferido numa cama, lavaram o ferimento,, improvisaram com um pano de prato um torniquete logo acima do tornozelo dele e tentaram acalmar o rapaz. Alceu chorava baixinho, em alguns momentos se desesperava e começava a gritar e, nessas horas, chegava quase a perder a consciência, necessitando ser segurado pelos amigos que não saiam de volta dele. Alfeu sentiu que estava começando a se descontrolar; ele chorava também, intermitente, começando a se sentir sem chão e ainda sem coragem para revelar a besteira que tinha feito.
Essa agonia já durava umas duas horas, quando um dos homens sugeriu que um grupo deles voltasse até o cafezal para tentar encontrar a cobra que mordera o Alceu. Argumentou que o médico, quando chegasse, precisaria saber que tipo de cobra era para poder ministrar o soro. Enquanto decidiam quem iria, o Alceu piorava a olhos vistos. Já não gritava nem chorava, apenas gemia baixinho e empalidecia. Alfeu se juntou ao grupo que iria voltar ao cafezal e, quando se puseram a caminho destrambelhou a falar e contou tudo como tinha acontecido de verdade. Chorava sem parar e perguntava que raio era isso que estava acontecendo, que mais parecia um pesadelo. Ele esperava uma reação violenta dos outros, mas, em vez disso, os homens se entreolharam incrédulos, e um deles falou que era difícil acreditar nisso quando lembrava do estado em que tinham deixado o pobre Alceu, quase defuntando, que Deus nos livre! E disse ainda que, se isso era mesmo verdade, o Alfeu que se apressasse em localizar a taquara para mostrá-la ao irmão e encerrar de vez com tamanha maluquice.
Embora já tivesse começado a escurecer, não foi difícil para o Alfeu localizar o pedaço de taquara perto do pé de café que o irmão estava limpando na hora do susto. Correu de volta para a casa do senhor Cunha e mostrou a vareta para o Alceu, que parecia já semi-inconsciente. Alfeu desatou a chorar feito criança, rezava em voz alta pedindo, com a voz entrecortada por soluços, perdão a Deus e ao irmão. Era de dar pena ver aquele rapaz sempre tão brincalhão e alegre num estado de desespero tão sem fundo.
Mas nada do que se dissesse ou fizesse tinha qualquer efeito sobre o Alceu, que parecia estar entrando num mundo inacessível pelo lado de fora, e começava a emitir uns ruídos estranhos com sua garganta, uma espécie de gorgolejo, e se mostrava a cada minuto mais largado, entorpecido, deslizando irresistivelmente para uma inconsciência tenebrosa. Já era tarde da noite quando o rapaz que tinha ido à cidade em busca do médico voltou informando que o Dr. Claremont tinha ido atender a uma emergência numa safra de porcos perto do rio das Cinzas e que, talvez, só estivesse de volta dia seguinte pela manhã.
A essa altura, o pânico com o estado de saude do Alceu já tinha tomado conta de todos. Decidiram então que o levariam para jacarezinho, onde certamente o atenderia o Dr. Gustavo Lessa, e onde a farmácia do Otacílio Fortes sempre tinha um bom estoque de soros antiofídicos, o que facilitaria o tratamento do rapaz – que todos ainda acreditavam que tivesse sido picado de cobra – e o Alfeu, que sabia que isso nunca havia acontecido berrava, o mais alto que seu pranto descontrolado permitia, que isso era inútil, pois nenhuma cobra nunca tinha mordido o seu irmão. Ninguém prestava atenção a ele, ninguém prestava atenção em ninguém nem em nada. Parecia que todos tinham enlouquecido.
Alguém trouxe a carreta, alguém foi procurar os bois. Foi no momento em que começavam a atrelar o segundo boi, lá pela 1h da madrugada, que o Alceu soltou seu último suspiro e parou de se mexer.
O tio Euclides tinha conhecido muito bem os dois irmãos, era afeiçoado a eles – como, aliás, todo mundo naquela redondeza. Já tinha escutado dezenas de histórias e presenciado muitas das brincadeiras do Alfeu, e por isso acreditava na veracidade do relato a ponto de atesta-la com sua palavra de honra. Quando foi perguntado sobre o destino do Alfeu depois da tragédia, ele dirigiu seu olhar para baixo e seu semblante escureceu e ficou nublado, como um céu armando tempestade. Ainda demorou a responder, escolhendo as palavras, que melhor destino teria tido se tivesse morrido ou ficado louco – porque os mortos se afundam no esquecimento, e os loucos podem inventar histórias que tapem os buracos das suas dores. O Alfeu não inventou história alguma, permaneceu vivo, lúcido e calado, cozinhando no fogo lento da culpa. Durante meses não sorriu, não conversou com ninguém nem botou a cara para fora de casa para fazer nada; mal comia ou dormia. Até que, certa madrugada saiu, sem se dar ao trabalho de fechar a porta da frente, e desapareceu no mundo como se nunca tivesse existido. Nunca mais ninguém ouviu falar dele...
Tio Euclides permaneceu sombrio depois dessa história, e ficou quase que completamente calado até encerrar a visita e ir embora dali. A narrativa do triste destino dos irmãos adquiriu, durante algum tempo, contornos de uma presença no meio da família, como se fosse uma narrativa exemplar, uma fábula com moral, uma parábola ou coisa que as valha.