terça-feira, 4 de outubro de 2011

Mais histórias e mais personagens

Pesca de peneira
    
Em Santo Antonio da Platina da década de 1920, cada um se divertia como podia. Os filhos de Cândido e os que andavam sempre com eles também gostavam de aprontar, mas havia outras turmas que aprontavam mais. Quando faziam as pescarias, era quase uma coleta de bagres, lambaris e outros peixes menores através de peneiras em córregos que existiam ali nas redondezas. Havia, pela região toda, muitos moinhos de fubá e monjolos, todos movidos a energia hidráulica pela água que era desviada do curso dos ribeirões através de umas valas rasas, que ficavam repletas de pequenos peixes, como lambaris, bagres e cascudos. A turma, quase sempre liderada por um dos rapazes mais velhos, Daniel ou Valdemar, escolhia um dos canais, dividia-se em dois grupos menores que se afastavam cerca de quatrocentos a quinhentos metros um do outro ao longo do canal e começavam a pescaria: os maiores entravam na vala com as peneiras e iam caminhando um em direção ao outro que estava lá longe, passando a peneira pelo fundo até recolher os peixes, que eram jogavam nas margens, onde os pequenos os recolhiam ainda vivos nos embornais. Iam um em direção ao outro, até que se encontravam em algum ponto e davam por encerrada a pescaria. Era comum recolherem, nessas ocasiões, vinte a trinta quilos de pescado, o que, na volta para casa, mobilizava toda a família para a limpeza e preparo, que consistia em salgar, fritar e guardar para a conservação em grandes latões cheios de banha de porco, já que não havia geladeiras naquela época.

Os cães e o gato
 
            Teve um dia que esse pessoal saiu para pescar de peneira numa dessas valas, e, quando estavam se aproximando do ponto escolhido, pouco antes de chegarem, ouviram uma balbúrdia infernal, latidos de cachorros e miados desesperados. Candinho foi na direção da barulheira, e não teve que procurar muito para ver dois cachorros que estavam pegando um gato, cada um por um lado. O pobre felino já estava todo machucado e completamente desesperado, disputado pelos dois cães, que o mordiam e puxavam. Ele se defendia como podia com suas unhas, mas a desvantagem era clara. O menino foi chegando perto gritando, chutando os cachorros e tentando separar os bichos; agarrou o gato e tentou puxa-lo para fora das bocas dos cães, mas o animalzinho, apavorado e alucinado de dor como devia estar, deu uma unhada na mão de Candinho que rasgou a carne bem fundo, machucou bastante, arrancando um bocado de sangue. Candinho largou imediatamente o bicho e se afastou um pouco. Sua mão estava doendo muito e o sangue corria abundante. Enquanto ele tirava a camisa e a enrolava na mão para tentar estancar a hemorragia, viu que o gato estava começando a entregar os pontos. Todo ferido e sangrando por inúmeros ferimentos, ele parou de se debater, silenciou e foi estraçalhado pelos cães. Candinho tinha enrolado a mão em sua camisa e estava olhando triste para aquela cena sangrenta quando os outros chegaram, logo em seguida. Um deles voltou com Candinho até a cidade para fazer um curativo de verdade. O garoto passou vários dias impressionado com a morte do pobre gato, e muito frustrado por não ter podido impedi-la.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

histórias e personagens

São Paulo/Paraná Railway

1925, a ferrovia estava chegando perto dali. Daniel conseguiu trabalho como vendedor de balcão no armazém que fornecia mantimentos para os trabalhadores. A estrada de ferro avançava a partir do entroncamento de Marques dos Reis, no estado de São Paulo, com destino aos Campos Gerais onde encontraria com a linha que subia desde o Rio Grande do Sul. Daniel acordava muito cedo, saía ainda noite alta, por volta das quatro da manhã, e seguia a pé até a estação Nova Platina, a última onde a linha havia chegado e de onde a linha que chegava do estado vizinho se dividia em duas, lançando um ramal para o centro do estado e outro para oeste, pelas brenhas do Norte do Paraná, região de densas florestas cheias de boas madeiras, terra fértil e água abundante, pontilhada aqui e ali com povoados, pequenas propriedades, grupos de índios, grileiros, rotas de tropeiros, um minúsculo destacamento militar na Vila de Jathay, lá na borda do Rio Tibagi, uma ou outra missão religiosa... Talvez não exatamente nessa ordem de colocação ou importância, mas com todos esses elementos ali presentes. Daniel não sabia de nada disso. Ele trabalhava duro o dia todo naquele balcão, e também recebendo mercadorias, fazendo pagamentos, limpando, organizando o estoque, tudo o que se fazia num entreposto daquele tipo. O comércio era uma concessão da São Paulo – Rio Grande Railway (tocada por alguém que Candinho não sabe dizer quem), empresa de capital misto ligada à Companhia de Terras do Norte do Paraná, subsidiária da Paraná Plantations que estava então começando a executar um projeto de expansão por aquelas novas terras (quase) sem dono e que viria a adquirir o controle acionário da empresa pouco tempo depois, em 1928. Bem ali, no ponto marcado pela estação e pelo armazém, começava o ramal que penetrava pela nova região, que estava nos primórdios de sua colonização organizada, e disseminaria, ao longo da linha, pequenos povoados que se tornariam, nos anos futuros, grandes cidades, chegando a Londrina (que ainda nem sonhava em existir) em mais uma década e depois ainda a Maringá, Cianorte e mais além... Era a base de uma ampla exploração agrícola e imobiliária dos ingleses, que tinham enormes interesses naquelas terras. Comentava-se, já desde o século anterior, antes mesmo da Guerra do Paraguai, que o objetivo deles era fazer uma ligação ferroviária entre os Oceanos Atlântico e Pacífico, para estabelecer uma linha direta entre os negócios do Reino Unido no Ocidente e no Oriente, economizando nas despesas do transporte naval e ainda mantendo o monopólio sobre a construção de estradas de ferro na América do Sul. Para esses fins, a ferrovia que penetrava o Norte do Paraná tinha um papel fundamental, pois já começava a apontar diretamente para a fronteira oeste do Brasil e para o Oceano Pacífico, do outro lado do continente.

Dr. Cunha - dentista, fabricante de sorvetes
e músico amador que tinha um terno só

Frequentavam o consultório do Dr. Cunha, dentista, que, quase certamente era da mesma família do professor da escola e talvez nem fosse formado. O homem tratava cáries e dores de dente, mas a clientela era pequena, então ele procurava aumentar sua renda fabricando sorvete e guaraná. As grandes barras de gelo seco para o fabrico do sorvete vinham de Ourinhos, a 50 km de distância, em caminhões, fechadas em caixas de madeira com pó de serra socado misturado com sal para manter a temperatura. As barras eram picadas e colocadas nas batedeiras de madeira movimentadas à mão. Quando iam ao consultório para tratar dos dentes, Os filhos de Cândido (Candinho lembra-se muito bem disso) ajudavam o Dr. Cunha a mover as batedeiras de sorvete. Também produzia guaraná, o Dr. Cunha. Após fazer toda a composição do refrigerante – o xarope doce, a água e mais um ou dois segredinhos – e engarrafá-lo, um momento antes de colocar a chapinha guarnecida de uma fina lâmina de cortiça na boca da garrafa, o fabricante enfiava por ali um bico de gás que espalhava bolhas naquele líquido e depois tampava imediatamente para que o gás não escapasse.

Por ali todo mundo sabia que quem toca violão é sempre um pouco malandro, quando não desocupado. Não era bem o caso do dentista Cunha, que era trabalhador mas tinha só um terno além da roupa de trabalho, tocava violão, e cantava nas varandas em noites frescas. Cantava bem o danado, era bom de prosa e ninguém podia encontrar um isso que fosse que o desabonasse, a não ser o fato de ele não ter dinheiro, como, aliás, todo mundo por ali. Cantando e tocando a viola ele amealhava amizades e arrancava suspiros das mocinhas. À noite, depois das sessões de viola e cantoria, ele entrava em sua casa, lavava cuidadosamente o terno e deixava-o secando até depois da lida do dia seguinte, quando então o passava bem passado, os bolsos pelo avesso e todos os vincos nos lugares certos, vestia-o, pegava, orgulhoso, seu instrumento e saia para mais uma noitada na varanda, cantando Catulo da Paixão Cearense e outras modas da moda.

No carnaval de 1926, enquanto as pessoas saiam fantasiadas na rua em grupos, cantando marchinhas e levando água, farinha, e outras coisas grudentas e/ou malcheirosas para guerrear, o violeiro saiu todo orgulhoso e altivo com sua fatiota, e, antes de caminhar 200 metros, foi emboscado por um grupo de rapazes que o encharcaram de água, jogaram farinha, quebraram ovos e esmagaram tomates podres na sua roupa. De nada valeram os protestos e pedidos do pobre rapaz, e aquela noite de carnaval terminou, para ele, antes de começar. Profundamente atingido em sua vaidade e orgulho pela lambança, ele voltou para casa melecado e indignado até a alma. Tirou o terno, encheu a tina de água e começou a lavar...

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Mais pilulas

Mudança

Por aqueles dias a família se mudou da serraria para uma casa melhor, de alvenaria e piso de assoalho, no centro da cidade, na esquina da praça da cadeia. Cândido, agora que não podia mais contar com o Véio Dito, tinha vendido sua parte da sociedade ao Sr. Fernandes, liquidado sua participação na serraria e estava começando com um negócio de secos e molhados, mais uma oficina de carpintaria num puxado de tábuas ao lado da casa. Foi nessa época que Candinho foi à escola pela primeira vez:

Candinho na Escola

Ele ia e voltava por aquelas ruas de terra, pisando o solo arenoso do lugar e chutando as pedrinhas do caminho com suas alpargatas fanabor de lona impermeável e sola de corda. A primeira coisa que ele aprendeu é que o objetivo da escola era passar o livro, ou seja, começar a estudar desde o começo, passando pelo meio e até o fim, de acordo com o que estava proposto na cartilha. No começo ele não entendeu muito bem o que queria dizer aquilo, mas depois achou que entendeu, e teve uma ideia brilhante para chegar ao fim do livro mais rapidamente diminuindo o tamanho dele. Quando voltava para casa, abriu seu livro e começou a arrancar as páginas, do fim para o começo, para passá-lo mais rápido e assim precisar ficar menos tempo na escola... Chegando em casa, todo orgulhoso de sua boa ideia, contou-a inocentemente ao pai que ficou muito, mas muito bravo mesmo, e achou por bem ensinar umas noçõezinhas básicas de certo e errado para aquele guri do jeito que sempre fazia, sem bater nem castigar fisicamente, mas aplicando uma punição moral, como ele sabia fazer muito bem, que deixava o punido incomodado e pensando no assunto por bastante tempo.

O professor com quem o menino estudava na escola chamava-se Cunha e era muito severo, chegava a ser assustador. Nunca aconteceu com Candinho, mas ele se lembra muito bem de como eram resolvidas questões disciplinares em sala de aula, particularmente com os alunos mais velhos, em sala de aula. Ele usava a palmatória, que é um instrumento como uma colher de pau plana ou um pequeno remo com a qual se aplicavam os bolos, batidas fortes nas palmas das mãos dos alunos.

O professor chamava o indisciplinado a um canto e, sob as vistas de todos os demais segurava o pulso do aluno com a mão aberta e castigava de acordo com uma classificação da indisciplina; de 1 a 12 bolos e palmatória, de acordo com a gravidade do ato: colocar carrapicho no assento do colega da frente, cuspir, escarrar, brigar, fazer bagunça durante a aula, jogar papel no outro, xingar ou ameaçar o professor. Era brutal, e Cunha parecia bater com gosto. O garoto saía chorando e muitas vezes retornava no dia seguinte com a mão inchada e a cara de quem estava passando dor. Assim muitos talvez nem tenham chegado a aprender a escrever direito o próprio nome.

A revolução dos tenentes

A cinco de Julho de 1924, segundo aniversário do levante ocorrido na Capital Federal, na época o Rio de Janeiro, que ficou conhecido como “Os 18 do Forte”, eclodiu a revolta tenentista no vizinho estado de São Paulo, liderada por Isidoro Dias Lopes. Da varanda da casa onde então a família morava, bem diante da Praça da Cadeia, Candinho observou várias vezes tropas de revolucionários que passavam por ali. Havia um aquartelamento perto de Santo Antonio da Platina, e a movimentação era grande. Às vezes eles estavam bem compostos e descansados, outras, iam e vinham sujos, exaustos e mortos de fome, uns a cavalo, outros a pé, uniformes desgrenhados, as polainas de couro duro protegendo-lhes as canelas, armados com revólveres de tambor e espingardas. Isso durou pouco tempo e quase não afetou a vida da cidade. Se houve combates na região, Candinho não sabe dizer. E, tão rápida e inesperadamente como vieram, as tropas se foram, seguindo adiante para o Rio Grande do Sul, para formarem, junto aos tenentes gaúchos liderados por Luis Carlos Prestes (cognominado O Cavaleiro da Esperança), a Coluna Prestes, que marcharia pelo país até 1927 numa tentativa quixotesca de fazer a revolução comunista no Brasil.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

historinhas em pílulas

Depois da viagem e do longo parênteses aberto com ela neste blog, voltemos a Santo Antonio da Platina nos anos de 1920, quando Candinho era uma criança de menos de 10 anos.

A festa do Padroeiro e a fogueira acesa com lagarto

O padroeiro da cidade era, como se poderia esperar, Santo Antonio, e a festa mais aguardada do calendário local era, justamente, a celebração do dia do Santo, que acontecia na praça principal, diante da Igreja Matriz: barraquinhas de jogos, comidas e prendas, a banda Lyra Platinense, que sempre tocava nessas ocasiões, devidamente posicionada no coreto que ficava no centro da praça. De noitinha juntava-se uma pequena multidão a espera da fogueira ser acesa com um espetáculo de fogos de artifício, o que era o ponto alto da festa. A lenha era empilhada, tronco sobre tronco, até uma altura de 8 a 10 metros e, entre essas madeiras grossas e no miolo da fogueira, eram colocados pedaços de madeira mais finos – gravetos, cepilhos, cavacos e palha de milho, e o grande momento era quando a pirâmide ia ser acesa, o que marcava também o início das festividades. O fogueteiro oficial esticava um arame desde o centro da pilha até uma esquina mais abaixo, a 70 ou 80 metros de distância, e sobre esse varal era colocado o chamado lagarto, um foguete incendiário feito com pólvora que corria por ele. No momento certo, o fogueteiro acendia o pavio do lagarto e este corria rapidamente sobre o arame desde a esquina até o centro da pilha, onde então explodia e dava a partida no espetáculo de fogos. Os gravetos, cepilhos, palhas e cavacos então se acendiam, fazendo arder os troncos maiores, até tocar fogo em toda a enorme pira, sob os aplausos entusiasmados dos assistentes. Enquanto isso se dava, A Lyra Platinense, devidamente posicionada no coreto a uma distância segura, atacava um dobrado ou uma marcha. E a festa então começava oficialmente.

Eletricidade

Cândido e Fernandes tinham adaptado um dínamo ao vapor da serraria e, desde esse dínamo, esticaram alguns fios pela cidade, sobre postes que eles mesmos produziram. Instalaram bocais com lâmpadas e interruptores em algumas casas e logradouros públicos que acendiam no fim da tarde e ficavam acesas até lá pelas 22h... Mas a luminosidade das lâmpadas incandescentes era muito fraca, irregular e instável, e a experiência não durou muito tempo. Ao que saiba Candinho, a história nunca registrou o fato de que os primeiros a levarem a energia elétrica para a cidadezinha, nos idos de 1924, foram os sócios da serraria. Por esses dias, o prefeito e grande líder político local era o Coronel Capucho.

Daniel aproveitou a energia elétrica para inventar uma brincadeira engenhosa: Cândido já estava se desligando da serraria e montando sua casa comercial no centrinho da cidade, a uma quadra da Praça da Matriz, e tinha puxado a eletricidade até lá e instalado uma tomada na parede. Daniel então ligou um fio bem fininho nas duas saídas da tomada, passou esse fio pelo canto do balcão e fixou a outra ponta numa perfuração feita numa moeda que foi depois mergulhada numa bacia com água. No período em que o dínamo ficava ligado não parava de passar uma leve corrente por aquele fio. A quem entrava no armazém, Daniel desafiava:

- Se você conseguir pegar a moeda de dentro da bacia, ela é sua.

Quem encostava a mão na água, tomava um choque leve. Gente que nunca tinha sabido na vida que a energia elétrica existia, tomava contato com ela de modo a nunca mais esquecer disso. Vários iam mais de uma vez desafiar a eletricidade, achando que podiam vencê-la pela velocidade ou pela esperteza, e o máximo que conseguiam era derramar água da bacia com o solavanco do choque.

domingo, 31 de julho de 2011

Santo Antonio da Platina - parte 2

Esta última postagem do diário de viagem está sendo quase um parto. O que está sendo contado aqui foi uma das maiores experiências da minha vida, e uma coisa assim não pode ser abordada de qualquer jeito. Como já ficou muito claro para mim - e já foi dito e repetido em postagens anteriores, a linguagem que domino não é competente para dar conta da experiência existencial. Por mais precisa e profunda que possa ser minha escrita e a descrição/narração das coisas ocorridas, já sei de antemão que não ficarei completamente satisfeito com o resultado. Ainda que eu esteja escrevendo isto principalmente para me referenciar e localizar, é óbvio que, se estou publicando numa mídia supostamente acessível ao mundo inteiro, é porque quero leitores - de preferência que se sintam tocados pelo que estiver escrito. Aqui chegamos a um ponto em que a viagem está terminando e as pontas - até agora soltas - se juntam. Mas não existe nenhum efeito especial, um clímax ou conclusão, e a história pode ficar até sem graça...

Feita a ressalva, declaradas as intenções e delimitado o problema, joga-se tudo pro espaço e seja o que Deus (ou a fortuna) quiser. Retornemos para a tarde de 16 de junho de 2011 em Santo Antonio da Platina, Norte Pioneiro do Paraná...

Maria Tereza (Titita) e Cícero Ferreira Dias, padrinho de Crisma do Candinho

Dona Marta Dal Bianco (filha do Cícero Ferreira Dias) e Candinho

Depois do encontro com a Bia, fizemos mais algumas fotos e anotações, fomos para o hotel, descarregamos as bagagens, descansamos alguns minutos e aí já era quase a hora marcada para a visita a Dona Marta, comadre de Candinho. Fomos muito bem recebidos, mas ficou óbvio que a senhora foi pega de surpresa e até ficou um pouco sem jeito. Foi tudo um pouco formal, mas muito suave e agradável. Dirceu, discreto como sempre, ficou nos esperando no carro. Fotos, anotações, lembranças dos velhos tempos. Candinho pediu uma imagem dos pais dela, padrinhos de crisma dele nos idos da década de 1930, que chegaria dias depois, pela internet. Paramos numa pastelaria para o lanche e fomos para o hotel. O velhinho devidamente instalado, a TV ligada, meu banho tomado, toca o celular: Bia e Pitt estavam vindo me pegar para darmos um passeio.


Alguns lugares em torno do perímetro da cidade, lendas urbanas de Santo Antonio da Platina (cidades pequenas também tem disso), frango à passarinho, cerveja, fotos antigas, a localização aproximada da serraria em que meu avô Cândido era sócio do Fernandes nos anos de 1920... Uma conversa rápida pra podermos dar conta, se não de tudo, de todo o possível. O senhorzinho de 93 anos no quarto do hotel, este que vos escreve passando um pouco da metade desse caminho e meus amigos trinta anos mais novos que eu – uma escadinha de gerações... Essa noitada rendeu ou renderá frutos importantes para a conclusão do trabalho sobre a história da família antes da fatídica noite em que Valdemar tombou no Lageado, e certamente para todo o resto da minha vida. Vivemos algumas horas de intermitência entre uma lucidez responsável e uma loucura adolescente. De retorno ao hotel, Candinho estava acordado, me esperando preocupado. Então aconteceu uma coisa que eu ainda não posso contar aqui porque pactuamos segredo, eu e meu pai, pelo menos enquanto está recente e possa haver um envolvimento emocional – mas posso dizer que foi o fecho dramático de toda a aventura do pai e do filho de retorno às origens, uma cena que, no momento certo, fará parte dos clássicos de minhas memórias. Sobre o fato só posso dizer que foi profundo e revelador; que saímos dessa, Candinho e eu, fortes, cúmplices e amigos como nunca antes nas nossas vidas.

Bia, eu, Pitt. O frango à passarinho está fora da cena, mas está na mesa.


Recortes da paisagem da terra dos ancestrais

Dia seguinte, 10 e alguma coisa da manhã: hotel acertado, minha passagem para Londrina comprada, Dirceu e Candinho na estrada, rumo a Curitiba. Tenho até as 13 horas. Me encontrei com Bia no centro da cidade (Pitt estava trabalhando: ele é jornalista de um diário de circulação regional) e saímos em mais um passeio por pontos da cidade. Fomos até a antiga estação Platina, que aparece em mais de um trecho das narrativas de Candinho; ali ao lado as antigas casas dos ferroviários, hoje ocupadas por ciganos (melhor não ficar muito tempo – sabe-se que existe certa tensão entre os ocupantes e as pessoas da cidade). Depois, por outro caminho, os campos e colinas em volta do perímetro urbano: o fato de ser véspera de meu aniversário, de ter passado os últimos dias numa relação intensa com meu pai; aquela menina linda e gente boa ali, passeando comigo no meio da amplidão daquela paisagem, somados ao cansaço físico da correria dos dias anteriores, à minha excitação intelectual e a uma predisposição para uma espécie de devaneio místico, me deixaram num estado de espírito muito peculiar. Fomos até um lugar onde existe um túnel ferroviário construído nos anos 20, mesma época em que Candinho, criança, viveu por ali e seu irmão mais velho, Daniel, trabalhou no entreposto da Railway, ao lado da estação hoje ocupada...

O lugar é lindo e o dia era um daqueles raros em que tudo – da qualidade do ar até a temperatura e a luz – estava na medida certa... Voltamos até a cidade, almoçamos, me levaram até a rodoviária, peguei meu ônibus e retornei a Londrina...

Não há mais muito que dizer, o que não significa que tudo o que aconteceu simplesmente acabou e não voltará mais. Na verdade ali começou uma coisa que mal e mal se delineou e cujos efeitos ainda se farão sentir por muito tempo, creio que por todo o resto da minha vida. Ali foi, ao mesmo tempo, um ponto de chegada e um novo ponto de partida...

...como se pode ver, não existe um momento culminante nesta história. E também não há mais nada que eu consiga, neste momento, dizer a respeito. O diário de viagem aqui chega a um ponto final e minha própria história, por mais que já esteja no meio do caminho, ainda está só começando. Vamos em frente: cada momento é o primeiro do primeiro dia do resto da vida de cada um, mas há momentos que brilham mais do que outros, como se fossem faróis, e eu simplesmente não sei porque isso acontece. Talvez não seja importante obter respostas, mas sim formular as perguntas do jeito certo...

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Santo Antonio da Platina - parte 1

O Rio das Cinzas, entre Abatiá e Santo Antonio da Platina


Chegando a Santo Antonio da Platina

16 de junho de 2011, começo da tarde, chegamos a Santo Antonio. Horizonte amplo, sol brilhante, um daqueles dias melhores que a encomenda. É para cá que toda essa história converge. Depois das postagens imediatamente anteriores a esta, que saíram em dois tempos, como num jorro, apareceram alguns obstáculos que interromperam o movimento e, assim, fiquei umas duas semanas sem postar nada... Isto propiciou um distanciamento necessário entre os eventos ocorridos e a transformação destes em narrativa. Sem esse hiato, talvez o texto a seguir saísse uma coisa cheia de exaltação e entusiasmo e carente de substância. Aqui estamos chegando à conclusão desta crônica de viagem. Aqui a experiência vivida é definida em termos de linguagem, onde se busca narrar o que é pessoal e particular de forma que faça sentido para os possíveis leitores - e assim tenta-se traduzir o evento, a coisa acontecida, para o mundo das palavras. É bem neste ponto que tudo se torna muito delicado, porque a experiência total da viagem do Pai e do Filho em busca das origens estava (está), naquele (neste) momento, se aproximando de seu termo, e é a partir de agora que tudo se junta ou dispersa de vez.
 Antes mesmo de chegarmos, uma parada para fotografar o morro que domina a cidade e a cidade que, da entrada, se vê no sopé desse morro. Primeira parada, Posto Platina (ou "Platinão"), bem na entrada da cidade. Este posto era de propriedade do Heráclito (Kito) Ferreira Dias, filho do Cícero, padrinho de crisma de Candinho... Bem, Kito não é mais o dono do posto, mas aparece ali de vez em quando. Conseguimos uns números de telefone, o endereço da Dona Marta Ferreira Dias (agora Dal Bianco), irmã do Kito e madrinha de batismo de minha irmã, num prédio de apartamentos no centro da cidade. Encontramos o lugar, mas não a Dona Marta. Fomos dali até uma empresa de engenharia onde encontramos um dos filhos da senhora, que fez a ponte com a mãe. Marcamos de encontrá-la lá pelas 18, 18:30h. Fomos até o Hotel Baggio, reservamos nossos quartos, largamos ali as bagagens e voltamos para a rua anotar, fotografar, localizar espacialmente as memórias de Candinho.

A Lyra Platinense

Candinho sentado na mureta diante da Casa Paroquial,
enquanto eu estava andando pela praça logo ali em frente tirando fotos

A Praça da Matriz, A casa Paroquial, o coreto onde, desde aquela época, tocava a banda Lyra Platinense, ainda com a lira no topo da cobertura. Diz Candinho que nada mudou muito no coreto, na igreja ou na casa paroquial; a praça tem árvores e calçamento hoje – o que, segundo ele, não existia na época – as construções devem ter sido restauradas ou reformadas em algum momento, as ruas foram asfaltadas e a cidade se modificou em torno daquele quarteirão. Eu rabiscava esquemas, plantas toscas de quarteirões e prováveis localizações de lugares e/ou coisas que existiram e/ou aconteceram há 60, 80 anos... A doceria da Dona Rosalina França, o cinema que passou “A Padaria Encrencada”, a Praça da Cadeia. O lugar onde o sargento Jorge Bueno da Rocha tombou, atingido por um balaço no meio do coração disparado por um desconhecido...
Era quase um excesso de informação, meu pai estava mentalmente excitado e eu tentava não perder nada. Já cansados da viagem e da agitação que vinha desde a manhã, em um ou dois momentos a conversa ficou mais difícil e eu tinha que respirar fundo, discutir um ponto obscuro ou perguntar mais uma vez enquanto rabiscava esquemas dos quarteirões, fazia cruzes, anotava as referências para sair depois fotografando os lugares, tentando localizar no espaço as memórias evocadas por Candinho. Tenho certeza quase absoluta de ter furado um ou dois pontos desse mapa tosco, fotografado a esquina de cá enquanto devia ter fotografado a de lá – mas isso verei/confirmarei quando retornar a Santo Antonio da Platina.
A esquina onde Diogo Apolinário Correia ficou de tocaia esperando pelo delegado Antonio de Souza, o quarteirão do Clube Platinense e o bar na frente deste, onde Edward levou a efeito sua vendetta no carnaval de 1938.
Bloco de anotações na mão esquerda, câmera na direita e, às vezes no bolso do casaco, quando eu ia conferir uma nota ou anotar algum detalhe. Num desses movimentos de guardar a máquina no bolso e me voltar para a esquerda, meu olhar caiu direto nuns olhos grandes, bonitos, claros e expressivos de mulher, estranha e surpreendentemente familiares:... –“Edu!” – Ela gritou meu nome, nós nos abraçamos, beijamos, conversamos atropelado por alguns minutos, trocamos números de telefone, ficamos de nos encontrar mais tarde...
Era a Bia. Eu a conheci faz uns 4 anos, quando morava numa república no Jardim Hedy, Londrina. De repente, numa manhã, lá estavam Bia e Pitt, um casalzinho jovem e bonito que estava vivendo – acho que ainda está – uma história de amor cheia de paixão e aventura, além de, naquela época, uma porção de obstáculos... Não conheço muita coisa disso tudo e, mesmo que conhecesse, não vem ao caso. Entre as outras pessoas que moravam na casa, tinha a Meire, a quem conheço já por toda minha vida, nascida na mesma cidade que eu, a mesma Cornélio Procópio que havíamos visitado havia poucos dias e filha do “Seu” Maurício Lopes que, segundo Candinho, foi buscado por ele e pelo seu melhor amigo da época (e de toda a vida), o meu padrinho de crisma, Reynaldo Scheibe, em Santo Antonio da Platina, para trabalhar no escritório da Cia. Aérea Real em Cornélio Procópio. Foi graças a isso, segundo meu pai, que “seu” Maurício conheceu Dona Didi Valin (ela faleceu há pouco tempo - se não me engano, dia 5 de junho - que Deus a tenha), mãe da Meire, da Cacinha e do Mauricinho...
Talvez não seja nada além de coincidência, e não vou dizer que é ou não é – eu sei lá. Aqui é aquela categoria em que a gente pode até contar a história com sentido e sequência, mas cujo significado mais profundo extrapola os limites da linguagem... A narrativa continua na próxima postagem.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

de volta ao diário - Lageado/Abatiá

Acertar o hotel, café da manhã, despedidas e toca pra estrada: primeira parada Abatiá, que nas narrativas de Candinho ainda era o Patrimônio (depois Distrito Judiciário) do Lageado, depois Carvalhópolis, Dr. Coriolano de Lima e, finalmente, passou a ostentar o nome que leva até hoje. Em 1937 essa seria uma viagem de, talvez, dois dias – hoje, pela estrada asfaltada e pesadamente pedagiada (aliás, alguém está lucrando absurdamente em troca de serviço quase nenhum – o pedágio de Jataizinho é praticamente uma fábrica de grana e a estrada não está tão boa assim), sem correr muito, levou pouco mais de uma hora, quem sabe hora e meia. Entre Londrina e Cornélio Procópio é quase um pulo pela BR 369. Passando Cornélio tem a entrada para Santa Mariana, logo depois Bandeirantes e, deixando então o caminho principal e atravessando a cidade, se pega uma estrada que vai acabar chegando em Abatiá.


 
Na estrada

Aqui é um ribeirão bem na entrada de Abatiá - mais ou menos no mesmo lugar que nos anos de 1920

O posto de gasolina na entrada da cidade

Na entrada da cidadezinha uma parada para tirar fotos e pegar informações num posto de gasolina. Apesar de terem se passado mais de setenta anos desde que Candinho saiu de lá, de haver em Abatiá computadores conectados na internet e serviço de TV por assinatura, a cidade não deve ter crescido quase nada. Talvez seja do tamanho de um bairro (e não dos maiores) de uma cidade como Londrina. De qualquer lugar onde se esteja o final do perímetro urbano pode ser avistado logo ali, a alguns passos de distância. Chegamos ao primeiro destino da viagem, a casa de um primo em segundo grau de meu pai, o Adércio Toledo Bueno, filho da Cesarina Lino, que foi quem abrigou Candinho na noite em que mataram Valdemar. Adércio é uma figuraça: um camarada grande e forte, que fala alto e rápido e parece que se criou acostumado a mandar. Ele tinha três anos quando tudo aconteceu, o que quer dizer que é dezesseis anos mais jovem que Candinho. È proprietário de alguns quarteirões em Abatiá e mora numa das melhores casas do lugar. Recebeu-nos com grandes demonstrações de efusividade, ofereceu-nos refrigerante, cerveja e “o melhor salgado de Abatiá” que saiu para buscar numa lanchonete ali perto (mas, também, tudo ali é perto e, sinceramente, o salgado não é tão bom assim...).
Adércio Toledo Bueno

Durante algum tempo o trio virou um quarteto: Dirceu caladinho, discreto como sempre, Candinho e Adércio desfilando nomes, eventos, lembranças de fatos e pessoas que ficaram num passado já quase distante, e eu ali assistindo, anotando, fotografando e interferindo o menos possível. Adércio acrescentou alguns novos dados sobre personagens e ocorrências e contou sobre a noite de 22 de maio de 1937 uma versão levemente diferente daquela contada por meu pai. Segundo ele, sua mãe foi buscar o jovem e apavorado Candinho perto do corpo do irmão a uns 30 metros rua acima (rua é maneira de dizer: embora hoje existam de fato ruas asfaltadas e bem demarcadas no local, de acordo com Candinho em 1937 não era bem assim). Candinho também sempre fala de seu pai com um respeito fervoroso, como um sujeito rude e bravo, mas curioso e inteligente – e, no meio da conversa, quando se referia a outro personagem que não me lembro qual, Adércio se dirigiu a mim dizendo que: “- era que nem seu avô – um ignorante”. Ele também contou que o subdelegado Cândido usava três armas: além da carabina Winchester e do revólver Smith&Wesson que aparecem já em partes da narrativa de meu pai, meu avô usaria também uma bengala que aparece num dos causos que ele contou. A história é mais ou menos como vem a seguir:

No Patrimônio do Lageado, início da década de 1930, existia um cachaceiro que, todos os dias, ao retornar chumbado para casa, surrava sua mulher. Ao tomar conhecimento disso, o subdelegado ficou de tocaia perto de onde o sujeito morava por volta da hora que ele costumava voltar, começo da noite. No que começou a barulheira da surra, Cândido invadiu a casa do cara e desceu-lhe a bengala – depois o arrastou pra fora, moido de pancada, e o amarrou numa árvore. A história para por aí, mas, a partir disso, já é possível entender um personagem um tanto mais complexo do que o pai idealizado descrito por Candinho. Ao que se saiba o subdelegado nunca matou ninguém nem castigou violentamente um filho seu, mas, juntando a descrição feita por Candinho de um caboclo rude porém nobre, mais a narrativa de Adércio, parece óbvio que para se fazer respeitar como autoridade naquela época e naquele lugar, era preciso agir com dureza.

Uma outra história do Adércio dá conta da ocasião em que Edward, depois de meses foragido por ter justiçado o assassino de seu irmão numa noite de carnaval no bar que ficava diante do Clube Platinense, finalmente se entregou. Nas palavras de Adércio a primeira declaração de Edward teria sido que “- eu tinha vontade que ele aparecesse de novo pra eu matar ele de novo”.

Após um passeio pelos lugares onde tudo se deu e mais algumas fotos, nos despedimos de Adércio e fomos pra estrada. Próxima parada, Santo Antonio da Platina, uns 30 km dali.

A gente chega a Santo Antonio da Platina por cima. A cidade fica numa região de serra baixa, num vale com colinas mais baixas ainda e é dominada por um morro largo. Diferente da região de Londrina, fortemente urbanizada e industrializada, ali em torno da cidade estendem-se campos, encostas suaves, rios com lageados e corredeiras, estradas de terra arenosa e horizontes amplos, além de estruturas e construções da idade do Norte do Paraná. Mas isto tudo eu soube e/ou vi depois. Meus óculos de sol tinham ficado em casa na terça-feira, quando fui encher os potes de comida e água dos gatos, esse dia já era a quinta, o tempo estava aberto e o sol brilhante. Foi quase uma overdose de luz durante o resto deste dia e parte do seguinte, até retornar a Londrina e encontrar meus óculos. Uma semana depois ainda estou um pouco deslumbrado...

quinta-feira, 30 de junho de 2011

mais uma nota

A sequência do diário de viagem vai ser mantida, mas, entre a última postagem e esta, meu computador deu pau, fez um frio de zero grau por aqui, estou tendo provas de final de semestre na UEL, tive que terminar e entregar um jornal pra gráfica... Apenas um tempinho pra tomar fôlego e já já voltaremos...

domingo, 26 de junho de 2011

uma nota

É bacana essa coisa de fazer blog porque a gente sempre pode voltar a uma coisa que está lá atrás e corrigir ou melhorar. Faz alguns dias que estou postando aqui o diário da viagem que fizemos, eu e meu pai, por lugares da região norte do Paraná. Fui publicando o texto bruto, tal qual saía, até a parte da viagem a Abatiá e Santo Antonio da Platina, logo o último onde parou e de onde vai continuar a partir desta nota - mas, aqui, começa um movimento em duas direções: Vou voltar atrás, ao já escrito no início deste diário e completar, deixar mais preciso, mais bem construido e contado, e continuar daqui para frente, quando, finalmente, viajamos aos lugares onde tudo começou...

terça-feira, 21 de junho de 2011

diário de bordo - parte 2

Detalhes do cemitério de Cornélio Procópio

Candinho no pátio do Museu Histórico, ao lado de uma charrete e encostado numa canga de boi,
falando sobre charretes e cangas de boi

Angelita, eu, Dirceu, Candinho e Rui Cabral no restaurante

Candinho e Tia Clara na casa do Pedro

A viagem de Candinho pelo norte do Paraná começou na tarde de 12 de junho. Fomos direto para o hotel Donna Linda, administrado pelo Fernando, espanhol de Tenerife, Islas Canárias. Primeira noite um tanto difícil: cama estranha num local desconhecido numa esquina no centro de uma cidade, um senhor de 93 anos se levantando da cama para ir ao banheiro quatro ou cinco vezes durante a madrugada, a expectativa da aventura que aquela situação toda prometia. Dia seguinte fomos atrás do caso do apartamento: uma história complicada que, oportunamente, merecerá uma abordagem mais detalhada. Assim, no rápido e rasteiro, depois de 14 anos de pendenga judicial, finalmente o juiz tinha batido o martelo a favor de Candinho e a propriedade passava a ser, então, legalmente dele. A visita à advogada Vânia Queiroz de manhã, o almoço no restaurantezinho de seo Raimundo, a ida ao cartório de registro de imóveis, umas pequenas correrias a mais pela cidade e pronto: retorno ao hotel para o pernoite, o lanche da tarde no quarto, novela, noticiário, cama. Candinho dormiu mais cedo e eu fiquei um pouco mais vendo TV. Nessa noite dormimos melhor.
Segundo dia de manhã, toca para Cornélio Procópio: primeiro a Praça do Cristo em reforma, ponto mais alto da cidade, onde ventava gelado, tinha uns urubus pousados na mão esquerda da estátua e se via em torno uma paisagem magnífica. Depois a casa na Rua Rio de Janeiro (onde a família morou em parte das décadas de 1960 e 70), que manteve (pelo menos quando vista de frente e de fora) exatamente a mesma estrutura, com algumas mínimas modificações. A cadeia onde aconteceu o massacre nos anos 60 (1966? pesquisar isto). Perto dali o local aproximado onde o avô Cândido construiu a primeira casa deles na cidade, a Praça do Botafogo, o cemitério, almoço no restaurante da Praça da Matriz (a igreja – acho que agora é catedral – estava  em reforma internamente), o salão Dom Bosco, a casa da rua Piauí, 669, a primeira que Candinho comprou e hoje não existe mais. De volta ao cemitério para tentar localizar o túmulo do Dr. Francisco Lacerda Junior – que ninguém lá sabia onde ficava. Aproveitando que já estava ali mesmo, fotografei algumas tumbas e esculturas e percebi que quase não existem anjos, santos ou nossas senhoras entre elas: a grande maioria é de esculturas de bronze ou algum material que o imita e representa Jesus.
Antes de tomarmos a estrada de volta para Londrina, uma passada pelo prédio onde ficava a Sementes Canadá. O lugar está caido, parece que nunca mais recebeu uma manutenção desde a época que Candinho trabalhou lá, embora ainda esteja bem de pé quando visto de fora. Ali perto o lugar que tinha sido o Bosque Municipal, inaugurado na década de 1970 e onde hoje estão construídos os estúdios da RIC – TV Record. Toca pra Londrina. Lanche, TV e cama. Eu ainda fiquei algumas horas trabalhando na internet.
Quarta-feira de manhã, de volta ao escritório da advogada pra terminar de definir algumas coisas. De um momento para outro adquiri o status de procurador, o que quer dizer que me comprometo a representar meu pai em algumas situações civis nas quais ele não possa estar de corpo presente, enquanto que a advogada Vânia vai representá-lo legalmente. Depois a visita ao Museu Histórico Padre Carlos Weiss, onde nem entramos: ficamos mais de uma hora no pátio, vendo os objetos que ali estavam e esquentando ao sol naquela manhã fria enquanto esperávamos pela Angelita Marques Visalli (que chegou acompanhada do fotógrafo Rui Cabral), minha professora de História Medieval, diretora do museu e finíssima dama, que estava do outro lado da cidade, numa reunião na UEL. O almoço “da diretoria” no centro da cidade (uma ocasião encantadora), as despedidas e toca visitar os Arrebola de Morais.
A tarde na casa do Pedro: Tia Clara, irmã da mãe, Dione, Diomar e, claro, o dono da casa. Depois uma amiga da tia, Dirceu, o motorista e Junior, fiel amigo do Pedro. Lanche e amenidades. Fim do dia: hotel, TV, internet. Dia seguinte seria quinta-feira, 16 de junho. Nesse dia mergulharíamos na verdadeira viagem.

(as fotos seguintes ainda estão na máquina e a máquina está em Curitiba)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A viagem de Candinho

diário de bordo - parte1
Vista do morro onde está localizada a escultura do Cristo em Cornélio Procópio

Coisa de fotógrafo amador: o Cristo que domina a cidade de Cornélio,
mal enquadrado e fotografado contra a luz

Sábado, 18 de junho de 2011 completei 55 anos. Não tem sido uma vida fácil até aqui. Parece que fui fabricado com algum grave defeito que ainda não consegui delimitar ou definir, mas que já vejo de frente como uma coisa sem forma, unidade formada de partes desiguais que perfazem um todo que não parece fazer sentido. Talvez não seja importante – ou até seja impossível – dar nome a essa coisa, mas eu sou um ser de linguagem e sempre tento dizer... Mas deixa o defeito de fabricação e toda essa conversa sobre ele para depois ou para nunca, e que essa observação sirva assim como uma primeira introdução ao verdadeiro tema deste texto: nomear é dar forma ao mundo, colocar um solo sob os pés, definir e localizar – mas também é encarcerar a experiência, a coisa em si, talvez inominável, talvez além de toda a linguagem, dentro de uma construção, uma jaula de signos compreensíveis e confortáveis. Por outro lado, somos humanos, e, como tais, nos distinguimos pela memória e pela linguagem que usamos para registrá-la, para nos referirmos a todas as outras coisas e para comunicar entre nós, que compartilhamos dessa linguagem, tudo o que entre nós for comunicável.

Memorial

Dia 1º de janeiro de 2011 fez onze anos desde que, num dia de Ano Novo na casa de Tia Clara, eu comecei a conversar com meu pai Candinho. Esta é a data em que, de uma forma assim meio vaga, resolvi escrever um livro de sua história e com suas histórias. Meu pai completou 93 anos no último 7 de maio. No dia 12 de junho ele viajou a Londrina para tratar de negócios importantes e realizar uma jornada de sentimento e memória pelas suas origens. Cornélio Procópio, Abatiá – o ex-patrimônio do Lageado, onde Valdemar tombou morto na noite de 22 de maio de 1937 – e, finalmente, Santo Antonio da Platina, onde tudo começou em 1918 quando Candinho nasceu, ou ainda 20 anos antes, quando José Coelho (Coelho de Souza ou Souza Coelho) Vilas Boas, oriundo das Minas Gerais, chegou ao bairro rural do Ubá, pertencente ao município de Santo Antonio. Eu o acompanhei a cada momento, fiel escudeiro do velho senhor. Na manhã da sexta-feira, 17 de junho, ele e Dirceu partiram de Santo Antonio da Platina com destino a Curitiba, e eu fiquei por mais algumas horas, até a saída de meu ônibus para Londrina.

Em nome do Pai, do Filho...

Algum momento da quinta-feira, dia 9 de junho, eu fiquei sozinho e em silêncio e comecei a falar com Deus. Tentei ser o máximo sincero, me aproximar como se fosse de um camarada com quem eu tivesse uma coisa importante para resolver: comecei dizendo que por muito pouco é que eu ainda acredito Nele, mas que O acho indiferente ao nosso destino, pobres mortais afogados no vale de lágrimas desta existência. A vida da carne é muito difícil, o tempo todo tudo está por um fio, o custo é muito alto e a recompensa tem sido mínima. Tudo está sujeito à aniquilação, o mundo é uma estrutura frágil e sob constante ameaça, a humanidade é como uma experiência que não deu muito certo, parecemos mais uma espécie de câncer que atacou a pele e as entranhas deste lindo planeta. Eu estou deixando de acreditar que qualquer coisa valha a pena. Pode ser uma descomunal arrogância da minha parte, acho que é mesmo, mas eu vou exigir uma prova Sua, Camarada; seja como for, venha como vier, eu peço um presente de aniversário: que Você me faça acreditar que ainda vale o esforço, porque eu estou cada vez mais desiludido, desacreditado e de saco cheio, achando muito sem graça a maior parte disso tudo, e nada podendo fazer a respeito, eu sozinho e minúsculo, menos que microscópico. Será que tudo se resume a sobreviver enquanto não chega o fim?...

... sei lá se de minha conversa com o Senhor do Universo ou qualquer outro fator estruturalista, materialista ou determinista – na verdade isso tem pouca importância – dia seguinte recebi a notícia que meu pai chegaria no domingo à tarde, e eu dispunha de dois dias pra me articular para sua vinda, e aconteceu tal qual o anunciado: ele chegou, conduzido pelo Dirceu, lá pelas 16h e alguns minutos de 12 de junho; nos instalamos e isso foi o começo da aventura: cinco noites dormindo com Candinho no mesmo quarto, os dias que se seguiam a essas noites andando juntos por onde ele queria e precisava andar, até a manhã da sexta-feira, dia 17, quando nos despedimos em Santo Antonio da Platina. Tive nisso tudo muita honra e muito gosto, e mais ainda: foi uma das maiores experiências de minha vida, uma daquelas que até poderia ou pode ser contada, convertida numa história com sequência e significado (é  que vai acontecer, e o que está sendo dito aqui), mas cujo alcance ultrapassa os limites da minha linguagem consciente, do meu entendimento e da compreensão que tenho da vida. Foi uma viagem reveladora e surpreendente por um recôndito de minha memória, da memória de Candinho, da nossa memória compartilhada. Vi, fotografei e anotei os lugares, os personagens e alguns novos dados que surgiram de depoimentos de Candinho e de outrem e da presença física minha e de meu pai nos lugares de suas origens e de alguns momentos fundamentais de sua vida. Em Santo Antonio da Platina tentei localizar as coisas no espaço e imaginar aquela cidade de 2011 nos anos 20 do século passado, naquele mesmo vale dominado por aquele mesmo morro, mais ou menos com aqueles mesmos quarteirões traçados sobre aquelas mesmas colinas suaves em torno da Igreja Matriz no centro. Foi revivido, por meu pai e por mim,o Arquétipo do Pai e do Filho, o mito do retorno às origens, a viagem para dentro de Si Mesmo. Houve um encontro surpreendente no centro de Santo Antonio da Platina que aqui apenas cito e é assunto para uma próxima postagem.

Mas vale dizer que, nas horas que ainda permaneci na cidade depois que Dirceu e Candinho tomaram a estrada para a capital e eu me vi passeando com a minha amiga Bia nos campos e colinas próximos à área urbana, bateu uma percepção do infinito, da fita dando a volta sobre si mesma: aquele mesmo tempo que ficara no passado recomeçando no presente: Ouroboros, a serpente dos alquimistas que morde a própria cauda, uma volta completa da roda do tempo circular. Eu estava na terra de meus ancestrais (quase) míticos, pisando os mesmos lugares que eles poderiam ter pisado, depois de uma jornada ao lado do senhor daquela memória, depois de uma série de acontecimentos sem nenhuma conexão aparente que se conectaram num todo ali presente, um momento luminoso de revelação existencial, uma resposta de Deus, o meu presente de aniversário, muito maior e mais significativo do que eu poderia sonhar. Pode parecer um estrondoso exagero melodramático, que seja então, mas ali se consolidou o destino e eu toquei no meu propósito de vida. Eis que o começo nunca terminou de acontecer e ali começava de novo.

Candinho é um magnífico camarada, um extraordinário parceiro de viagem, o depositário fiel de uma memória de valor inestimável, é tudo o que se possa dizer de bom dele. É um velhinho frágil e preocupado – preocupa-se com tudo e com todos, comigo também (eu, o filho do meio e alternativo que ainda não se acertou na vida e já está ficando velho), e eu com ele com toda a certeza. Tudo começou em Santo Antonio da Platina em 1898, vinte anos antes de Candinho nascer na manhãzinha de 7 de maio de 1918, mas ainda antes, na região de Ubá, em Minas Gerais, onde nascera Cândido Bonifácio de Souza, o Cândido Coelho (segundo Candinho) em 1884... Tudo começava de novo naquela manhã radiante de 16 de junho de 2011.


Candinho na praça do Cristo. Ao seu lado o Dirceu, valente motorista e bravo camarada.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Notas sobre a viagem de Candinho

Candinho no final da manhã de hoje, 14 de junho de 2011, num flagrante da viagem sentimental - mas também pragmática - pelos locais de seu passado e negócios do seu presente. Aqui, em plena praça do Cristo, Cornélio Procópio, cidade onde chegou em 1937 e saiu apenas em 1975. Estava um vento bruto e gelado lá em cima e - não dá pra ver direito na foto - tinha dois urubus pousados na mão esquerda da escultura. Dirceu, o valoroso motorista e valete comentou que faria mais sentido se fossem pombas...

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Allceu e Alfeu

(esta história deve ter sido contada por Candinho numa das primeiras gravações que fizemos, há uns 10 anos ou mais. Como o volume de material gravado é muito grande, ficou esquecida durante algum tempo... Quem se lembrou dela e a resgatou do poço das histórias quase esquecidas foi minha irmã, a Etel Frota, que precisava de uma história assim (assim como? - Assim como esta) para não sei bem qual objetivo. Não fiz muita coisa no texto dela, quase que só acrescentei uma introdução e um fecho e mexi um pouco em algumas construções de frases, sem grande motivo, só para ficar com mais cara de uma coisa que eu próprio teria escrito. O  causo teria tudo para ser uma anedota,  se  não fosse uma tragédia... Chega de introdução. Vamos à triste história dos irmãos Alceu e Alfeu)...

Era domingo e a manhã já ia alta. A cidadezinha estava naquele silêncio, naquela pasmaceira... Movimento e ruído, só na Praça da Matriz e na igreja, onde os fiéis acorriam, conclamados pela voz metálica dos sinos que anunciavam as missas. Na casa de Cândido também estava tudo sossegado: o pai estava no barracão da serraria desde que o dia tinha clareado; Etelvina e Aurora já haviam assistido a primeira missa do dia com os dois mais novos e estavam na cozinha preparando o almoço – Aurora estava pondo o feijão para cozinhar e Etelvina preparava para fritar uns grandes pedaços de carne de porco, enquanto Candinho e Ides, sentados a um canto da mesa, desenhavam letras nas folhas de um caderno de caligrafia sob a supervisão das duas. Daniel e Valdemar estavam passeando na Praça da Matriz com outros garotos da cidade, olhando a saída da missa e já prestando a maior atenção nas meninas que por ali passavam com suas famílias. Era um domingo de sol, como qualquer outro, mais ou menos 10 da manhã, quando alguém chamou da frente da casa. Cândido foi atender e, pouco depois, entrou com o tio Euclides, irmão de Etelvina, que morava não muito longe dali, no bairro do Taquaral, e tinha resolvido, assim que acordara naquela manhã de domingo, que iria a cavalo até Santo Antonio da Platina para visitar a irmã, o cunhado e a sobrinhada, e filar uma bóia na casa deles. Pouco depois, quando Daniel e Valdemar retornaram de seu passeio, encontraram a cozinha cheia de gente, colocando a prosa em dia e bebericando café, todos conversando animados, menos os dois menores, que sabiam que não deviam se meter na conversa dos mais velhos, a não ser se fossem solicitados. Etelvina fritava a carne na grande frigideira de ferro e Aurora temperava o feijão sem deixarem de participar da animada conversação. Talvez tenha começado na mesa do almoço, talvez tenha sido depois que todos se levantaram, Candinho não sabe mais. Ele se lembra que o tio Euclides deu o arremate à narrativa na varanda, depois do cafezinho adoçado com rapadura. Era uma história que poderia até ser engraçada, se não fosse trágica. Havia acontecido pouco tempo antes, no Taquaral, onde o tio morava. Ele mesmo não havia presenciado os acontecimentos, mas ali era uma comunidade pequena, todos se conheciam e a história era, sem dúvida nenhuma, verdadeira.
Existiam muitos sitiantes naquele bairro, cada um tocando sua terrinha e suas atividades. Quando qualquer um dos proprietários dali se via às voltas com um excesso de trabalho provocado fosse pelo que fosse, ele promovia um mutirão para resolver o problema. Isso abreviava o tempo que seria gasto naquela tarefa e dava resultados muito bons em muito pouco tempo. Acontecia principalmente em épocas de colheita, ou quando o mato estava tomando conta das roças. O sitiante reunia todos os vizinhos, um trabalho conjunto de vinte, trinta, até mais pessoas; fornecia uma alimentação de sustança enquanto durasse o mutirão e até uma cachacinha ao final da empreitada.
Aquela foi a vez do senhor Cunha (mas como tinha gente chamada Cunha em Santo Antonio da Platina! – Será que eram todos parentes?) promover um mutirão reunindo a vizinhança, porque ele tinha passado um período enfermo e o mato estava tomando conta do seu cafezal. Lá compareceram Alfeu e Alceu, uma dupla de irmãos muito conhecidos na região. Alfeu era magrão e seco, queimado de sol, muito brincalhão, safado, sempre inventando histórias engraçadas e provocações. Alceu, ao contrário, era branco e um pouco rechonchudo, tímido, ingênuo e amedrontado. Tinha medo de tudo, mas, acima de qualquer outra coisa, tinha medo de cobra. Embora muito diferentes (ou talvez por isso mesmo) os irmãos eram inseparáveis. Não se desgrudavam de jeito nenhum e nunca brigavam. Estavam sempre juntos nas peraltices ou nas realizações do bairro. Frequentemente caçavam ou pescavam nos matos próximos e conviviam como os melhores amigos do mundo.
Eles atenderam ao chamado do vizinho e se empenharam na empreitada da limpeza e capina do cafezal. Depois de algumas horas o trabalho já ia adiantado e, em certo momento, o Alfeu se afastou um pouco, como se fosse procurar um lugar para fazer suas necessidades, mas o que ele tinha em mente era outra coisa: ele teve a infeliz ideia de pregar uma peça no irmão. Alfeu encontrou uma taquara, rachou-a e fez uma vareta de uns 40cm de extensão por 2,5 de largura. Em uma das extremidades recortou, com capricho de escultor, duas pontinhas agudas, a uns 2 cm uma da outra. Era, sem tirar nem por, a embocadura de uma cobra!
Alceu estava limpando o mato debaixo de um pé de café, agachado, quando o Alfeu veio por trás e cutucou com força o seu calcanhar com a vareta. O Alceu se apavorou, deu um pulo, gritou desesperado e cambaleou alguns metros, caiu sentado no chão e agarrou o tornozelo machucado. Com os olhos esbugalhados, pálido, viu os dois pontinhos de sangue onde a taquara o havia picado. Começou a gritar desvairadamente e a chamar por socorro, o que acabou atraindo o resto do pessoal que estava trabalhando próximo dali. Alfeu primeiro se fez de desentendido, fingiu que não era com ele; depois, assustado, foi apoiar o irmão. Olhando o estado do pobre, começou a achar, pela primeira vez na vida, que talvez tivesse ido longe demais e, embora estivesse quase arrependido, não desfez o que tinha feito. Aquilo não haveria de dar em nada e, se ele confessasse, poderia até ser agredido pelos outros ou pelo próprio irmão, com razões de sobra.
Uma turma levou o Alceu carregado para a casa do senhor Cunha, enquanto um dos homens picava carreira até Santo Antonio da Platina em busca do médico, Dr. Claremont. Deitaram o ferido numa cama, lavaram o ferimento,, improvisaram com um pano de prato um torniquete logo acima do tornozelo dele e tentaram acalmar o rapaz. Alceu chorava baixinho, em alguns momentos se desesperava e começava a gritar e, nessas horas, chegava quase a perder a consciência, necessitando ser segurado pelos amigos que não saiam de volta dele. Alfeu sentiu que estava começando a se descontrolar; ele chorava também, intermitente, começando a se sentir sem chão e ainda sem coragem para revelar a besteira que tinha feito.
Essa agonia já durava umas duas horas, quando um dos homens sugeriu que um grupo deles voltasse até o cafezal para tentar encontrar a cobra que mordera o Alceu. Argumentou que o médico, quando chegasse, precisaria saber que tipo de cobra era para poder ministrar o soro. Enquanto decidiam quem iria, o Alceu piorava a olhos vistos. Já não gritava nem chorava, apenas gemia baixinho e empalidecia. Alfeu se juntou ao grupo que iria voltar ao cafezal e, quando se puseram a caminho destrambelhou a falar e contou tudo como tinha acontecido de verdade. Chorava sem parar e perguntava que raio era isso que estava acontecendo, que mais parecia um pesadelo. Ele esperava uma reação violenta dos outros, mas, em vez disso, os homens se entreolharam incrédulos, e um deles falou que era difícil acreditar nisso quando lembrava do estado em que tinham deixado o pobre Alceu, quase defuntando, que Deus nos livre! E disse ainda que, se isso era mesmo verdade, o Alfeu que se apressasse em localizar a taquara para mostrá-la ao irmão e encerrar de vez com tamanha maluquice.
Embora já tivesse começado a escurecer, não foi difícil para o Alfeu localizar o pedaço de taquara perto do pé de café que o irmão estava limpando na hora do susto. Correu de volta para a casa do senhor Cunha e mostrou a vareta para o Alceu, que parecia já semi-inconsciente. Alfeu desatou a chorar feito criança, rezava em voz alta pedindo, com a voz entrecortada por soluços, perdão a Deus e ao irmão. Era de dar pena ver aquele rapaz sempre tão brincalhão e alegre num estado de desespero tão sem fundo.
Mas nada do que se dissesse ou fizesse tinha qualquer efeito sobre o Alceu, que parecia estar entrando num mundo inacessível pelo lado de fora, e começava a emitir uns ruídos estranhos com sua garganta, uma espécie de gorgolejo, e se mostrava a cada minuto mais largado, entorpecido, deslizando irresistivelmente para uma inconsciência tenebrosa. Já era tarde da noite quando o rapaz que tinha ido à cidade em busca do médico voltou informando que o Dr. Claremont tinha ido atender a uma emergência numa safra de porcos perto do rio das Cinzas e que, talvez, só estivesse de volta dia seguinte pela manhã.
A essa altura, o pânico com o estado de saude do Alceu já tinha tomado conta de todos. Decidiram então que o levariam para jacarezinho, onde certamente o atenderia o Dr. Gustavo Lessa, e onde a farmácia do Otacílio Fortes sempre tinha um bom estoque de soros antiofídicos, o que facilitaria o tratamento do rapaz – que todos ainda acreditavam que tivesse sido picado de cobra – e o Alfeu, que sabia que isso nunca havia acontecido berrava, o mais alto que seu pranto descontrolado permitia, que isso era inútil, pois nenhuma cobra nunca tinha mordido o seu irmão. Ninguém prestava atenção a ele, ninguém prestava atenção em ninguém nem em nada. Parecia que todos tinham enlouquecido.
Alguém trouxe a carreta, alguém foi procurar os bois. Foi no momento em que começavam a atrelar o segundo boi, lá pela 1h da madrugada, que o Alceu soltou seu último suspiro e parou de se mexer.
O tio Euclides tinha conhecido muito bem os dois irmãos, era afeiçoado a eles – como, aliás, todo mundo naquela redondeza. Já tinha escutado dezenas de histórias e presenciado muitas das brincadeiras do Alfeu, e por isso acreditava na veracidade do relato a ponto de atesta-la com sua palavra de honra. Quando foi perguntado sobre o destino do Alfeu depois da tragédia, ele dirigiu seu olhar para baixo e seu semblante escureceu e ficou nublado, como um céu armando tempestade. Ainda demorou a responder, escolhendo as palavras, que melhor destino teria tido se tivesse morrido ou ficado louco – porque os mortos se afundam no esquecimento, e os loucos podem inventar histórias que tapem os buracos das suas dores. O Alfeu não inventou história alguma, permaneceu vivo, lúcido e calado, cozinhando no fogo lento da culpa. Durante meses não sorriu, não conversou com ninguém nem botou a cara para fora de casa para fazer nada; mal comia ou dormia. Até que, certa madrugada saiu, sem se dar ao trabalho de fechar a porta da frente, e desapareceu no mundo como se nunca tivesse existido. Nunca mais ninguém ouviu falar dele...

Tio Euclides permaneceu sombrio depois dessa história, e ficou quase que completamente calado até encerrar a visita e ir embora dali. A narrativa do triste destino dos irmãos adquiriu, durante algum tempo, contornos de uma presença no meio da família, como se fosse uma narrativa exemplar, uma fábula com moral, uma parábola ou coisa que as valha.

entre parenteses

Esses dias a coisa andou animada por aqui. A novidade digna de nota é que o nosso herói, Candinho, mês e pouco depois de completar 93 Viajou de Curitiba a Londrina para tratar de seus negócios... Agora ele está no quarto do hotel assistindo novela (eu não poderia hospedá-lo porque moro numa espécie de canteiro de obras, pouco saudável para alguém de idade tão avançada) enquanto eu atualizo o blog...  Candinho velhinho é um capítulo à parte, que será contado no momento certo... Esta postagem foi só para registrar.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

anotação de passagem

Algum tempo sem postar aqui. Trabalhos se interpondo, coisas acontecendo, o frio se instalando. Hoje passo apenas para dar uma justificativa ligeira. Para os próximos dias uma história impressionante e emocionante: Alceu e Alfeu.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O Véio Dito

O Véio Dito já tinha vivido muito tempo e visto muita coisa. Ele era alguém que convivia bem com a vida e conhecera a morte bem de perto, das formas mais diferentes e em inúmeras ocasiões. Nem mesmo ele tinha certeza de sua idade, e era quem menos se importava com isso. O que valia mesmo era fazer bem feito o seu trabalho – o mais era bordado. Dito nunca que falhara com sua obrigação.

Cândido saia a visitar as propriedades da região, principalmente aquelas em que estavam sendo abertas roças, para negociar a compra das madeiras e tratar o corte. Fazia os pagamentos numa visita posterior, depois do processo todo concluido. Era no retorno de Cândido após a negociação que entrava em cena o Véio Dito, responsável por conduzir a carreta de bois até o local determinado, escolher as árvores em pé e dirigir a operação de derrubada e o corte das toras de acordo com as necessidades da serraria e as possibilidades de transporte e colocação delas nas carretas. Dito comandava a movimentação de meia dúzia de homens: enquanto uns levantavam a tora, outros a encaixavam nos dentes ou degraus das rampas que subiam para a carreta, escoravam-na bem com grandes cavacos de madeira e repetiam tudo de novo, as alavancas levantando, os homens empurrando e ajeitando os troncos, até que finalmente a carga estivesse deitada sobre o transporte. Era uma função que demorava muitas horas seguidas, pois os lenhadores tiravam às vezes peças sólidas de três ou quatro metros cúbicos de madeira de lei, e cada tora carregada significava uma operação complexa e arriscada. Não raro um trabalhador quebrava a perna, deslocava um ombro ou rompia um tendão. Todos conheciam a triste história de algum infeliz sobre quem uma tora rolara, esmagando-o. Um destes, por coincidência, também se chamava Dito, mas nada a ver com o Preto Velho. Esse um era branco de olhos verdes, e teria pouco mais que vinte anos quando da fatalidade... O véio, que era forte como um touro, mas já nem tanto quanto em décadas passadas, impunha ritmo e constância ao trabalho como se batesse num tambor, comandava a montagem da carga sobre o carro e fazia as últimas amarras. Depois conduzia a madeira até a serraria, onde ainda coordenava a operação de descarga sobre a esteira rolante que levava à irresistível serra vertical.

Naquela manhã fresca e luminosa do Ano do Senhor de 1924 o Véio se foi deste mundo muito simplesmente por parar de funcionar. Talvez fosse começo de Abril, e ele morreu em paz e silêncio, sossegada e discretamente como sempre vivera. Dia anterior tinha puxado bem uns seis metros cúbicos de madeira para alimentar a serra. Lavou-se depois da função, alimentou-se e foi se recolher... Talvez tenha começado a sonhar, como de outras vezes, que flutuava sobre a cobertura de seu puxado – e depois mais alto e em movimento, sobre a casa da família, o barracão da serraria... Viu os bois no pasto e, para lá do pasto, o canavial... Então, subindo mais alto e indo mais longe ainda, flutuou, como que levado por um vento, além do terreno em volta da serraria, sobre os matos de onde puxava toras. Lá de cima, viu no horizonte o sol se acendendo, vindo desde o outro lado do mar onde ele nunca tinha estado, mas do qual se lembrava com uma memória herdada dos pais, dos avós e de mais longe ainda, desde quando o primeiro deles tinha sido trazido até estas terras desde aquelas terras distantes, do outro lado do mar, onde estavam suas raízes... Talvez tenha resolvido naquela madrugada que não voltaria mais, que valia mais a pena continuar voando levado pela correnteza do sonho através do oceano, na rota contrária à dos navios em que os traficantes tinham trazido seus ancestrais da África, até as origens de que ele não tinha nenhuma lembrança ou referência consciente... Talvez tenha pensado, com aquele pensamento estranho e vago de sonho, que poderia ir agora e definitivamente tão longe que não valeria a pena retornar... E assim se encerrariam todas as gerações de servidão que tinham culminado no Véio Dito: ele seguiu o sonho e não retornou mesmo, nunca mais. Não acordou em sua cama, nem ninguém dos que ficaram soube que tenha acordado em algum lugar. A família toda chorou por ele um choro sincero e sentido, e o velho corpo foi sepultado em terreno consagrado, cristão batizado que era.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Algumas daquelas lembranças de infância que nunca se apagam...

As canas assadas

Em Santo Antonio da Platina, foram morar numa parte do próprio barracão da serraria, onde tinham sido erguidas paredes divisórias e o espaço transformado numa casa com uma sala pequena, cozinha e dois quartos com camas: um maior, do casal, e outro menor, da primogênita Aurora. De manhãzinha, depois das noites de frio, quando os meninos estendiam um lençol sobre o algodão guardado na tulha pegada à casa e se aninhavam nele meio enroscados uns nos outros e cobertos com seus cobertores, quentinhos e confortáveis, eles, ainda meio sonados, iam pegar umas canas que havia para sustento dos bois na propriedade e assavam as varas em fogueiras feitas com os cavacos e gravetos que sobravam da serraria, até que as cascas torravam e estouravam. Depois descascavam e chupavam os grandes gomos quentes e doces.

Candinho lava os pés sozinho

Uma noite, saíram Cândido, Etelvina e Aurora, e o caçula Candinho ficou só com os irmãos homens. As horas corriam e os mais velhos não retornavam. O pequeno então empurrou uma cadeira até o barril cheio de água do poço, trepou nela com a caneca na mão, encheu-a e levou-a até a grande chaleira de ferro que estava sobre a chapa do fogão de lenha perpetuamente aceso. Avivou a chama encostando mais algumas achas e voltou para o barril. Foram três viagens até encher a chaleira. Depois, quando a água já estava quente, ele tirou a pesada chaleira de cima do fogão e derramou o conteudo numa baciazinha de folha; temperou a água, lavou seus pés bem lavados e, após secá-los, caminhou nos calcanhares até a escada de madeira que levava à tulha cheia de algodão onde dormia com os outros irmãos, subiu e se ajeitou para passar a noite. Minutos depois ouviu que os pais e a irmã chegavam, e desceu para lhes contar a proeza realizada, o desafio que havia vencido sozinho, sem se queimar nem derramar nenhuma gota: um serviço bem feito, talvez o primeiro de sua vida. Cândido disse que ele era inteligente, Etelvina beijou-o no rosto e Aurora lhe deu os parabéns. Candinho dormiu bem e feliz nessa noite.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Fala Candinho:

Como era um município recém criado, as ruas de Santo Antonio da Platina eram sem revestimento nenhum, raramente com calçada. A maioria das casas era de madeira, algumas poucas construidas em alvenaria e com cobertura de telhas de cerâmica. A cidade, acredito, não tenho uma precisão, devia ter, no máximo, na época, de 3 a 4 mil habitantes, algumas ruas já delineadas e duas praças: a Praça da Matriz tinha um coreto no meio, onde a banda Lyra Platinense tocava duas vezes por semana, e os jovens e as famílias iam flertar e fazer footing... Uma quadra para baixo ficava a praça da cadeia, chamada assim porque existia uma cadeia de madeira situada bem no centro dela – a residência e a casa comercial de meu pai viriam a ser ali algum tempo depois. O cinema, que abriria em 1925, ficava entre as praças da cadeia e a da matriz. A prefeitura ficava também na esquina da Praça da Matriz. Quando chegamos em Santo Antonio da Platina, em 1923, meu pai havia vendido o sítio no bairro do Ubá e se associado a uma serraria em Santo Antonio da Platina com o senhor Fernandes. Com a entrada de meu pai como sócio, que havia investido certa importância em dinheiro, a função principal era de localizar madeira para compra e o transporte das toras para a serraria. Meu pai contava também com um ex-escravo de família, que tinha sido de meu avô, o Véio Dito, que era o encarregado do transporte dessas madeiras. O Véio Dito então percorria a região de Santo Antonio da Platina e efetuava inicialmente a compra das perobas ainda não derrubadas e outras madeiras de lei, e meu pai fazia uma visita posterior e efetuava os pagamentos, promovia a derrubada dessas árvores e o corte das toras de acordo com as necessidades e a colocação nas carretas, onde o Véio Dito tinha uma função de carreiro, como era chamado aquele que conduzia as carretas de boi, até levar para Santo Antonio da Platina, na serraria, que ficava em meio a um pasto, ao lado direito da entrada de quem vinha da região de Jacarezinho e do bairro do Ubá, já mencionado. Além do barracão e do pasto, tinha uma determinada área desse terreno reservada para o plantio de cana, que servia para a alimentação subsidiária dos bois que iam nas carretas para puxar madeira. Na serraria passamos a residir numa construção anexa... Meu pai havia trazido também do bairro do Ubá uma quantidade de algodão que havia sido colhido e não havia sido comercializado. Ele construiu uma espécie de tulha com madeira da própria serraria, que servia de cama para nós: eu, meu irmão Edward, meu irmão Valdemar, meu irmão Daniel. Nós subíamos por uma escada até o alto dessa tulha, era colocado um lençol sobre o algodão e cada um se arrumava de alguma forma para dormir, e era, por sinal, muito agradável, porque estava numa época de bastante frio e o algodão nos mantinha aquecidos, e ainda uma coberta era colocada sobre nós.

Nessa época em Santo Antonio da Platina, a família mais importante que morava na cidade eram os Capucho. Tinha também os Rezende, o capitão e a sua família... Como era mesmo que se chamava aquele capitão? Branco Pombo tinha uma casa comercial, os Nepomuceno, nossos parentes, também tinham casa comercial, a família Milani de Moura, Pedro Claro de Oliveira, família Giovanetti, que, hoje em dia, um dos descendentes tem cartório em Curitiba, tinha ainda a família do Cícero Ferreira Dias, que, por sinal, foi meu padrinho de batismo. Também uma família de bastante destaque era a família Borges Monteiro, por sinal eram dois irmãos os chefes da família, o Manuel Borges Monteiro e o João... O Manuel, conhecido por Maneco, era gerente da casa Monteverde, filial de uma casa de igual nome sediada em Jacarezinho. Tinha o capitão José Cândido Teixeira, também... Talvez seja esse o capitão que eu não lembrava agora pouco...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Passagem - O Serelepe

Um dia, em 1923, quando Candinho estava com 5 anos, o sítio do Ubá foi vendido e eles se mudaram para Santo Antonio da Platina, onde o patriarca Cândido tinha se associado numa serraria com um certo Sr. Fernandes (de quem Candinho não sabe mais nada), que havia entrado com a maior parte do capital enquanto Cândido ficava encarregado do trabalho de localizar as árvores no meio da mata, providenciar para que fossem derrubadas, serradas no local em pedaços de tamanho adequado para o transporte, embarcadas nas carretas e transportadas até a serraria, onde a madeira era desdobrada em tábuas e outras peças – dependendo da qualidade e o fim para o qual se destinava – que seriam, posteriormente, utilizadas nas construções da região. Para realizar esse trabalho Cândido contava com, além de seu espírito empreendedor, o Véio Dito, seus carros, suas juntas de bois e alguns homens contratados que tinham que ser fortes e hábeis no uso de machados e serras.

Então, certa madrugadinha fria de meados de maio, a família acordou mais cedo que o costume, e todos tiveram que colaborar para arrumar o que ainda restava da tralha da família sobre o carro de boi. Cândido percorreu a casa mais uma vez para ver se não estavam deixando nada para trás, trancou-a, entregou a chave ao vizinho que iria cuidar até a chegada do novo morador, rodeou mais uma vez a caravana fazendo as últimas verificações, sentou-se ao lado do Véio Dito e deu a ordem de partida. Ali se iniciava a última viagem da mudança para a cidadezinha a seis quilômetros de distância.

Candinho, que com cinco anos de idade completados poucos dias antes, tinha nascido e vivido toda sua vida no Ubá, ia à frente, com a mãe e os irmãos, explorando o mundo, e a carreta carregada seguia logo atrás conduzida pelo Véio. Cândido ia atento ao andar do carro e ao equilíbrio da carga. Às vezes proseavam alegremente, às vezes falavam poucas palavras sérias, ou passavam longos minutos calados. Seguiam num passo firme e constante, mas tiveram que parar algumas vezes para ajeitar alguma amarra que tinha afrouxado num solavanco.

Era uma manhã quase fria, começo de um dia claro e bonito de sol. Daniel e Valdemar, de treze e onze anos, iam bem à frente do grupo, enquanto Etelvina e Aurora caminhavam com os mais novos. Apesar de cansativo, era quase um passeio. Entraram numa curva fechada no carreiro de terra. Por um momento estiveram dentro de uma bolha de silêncio só penetrada pelos sons do mato em volta: não viam nem ouviam os que estavam à frente nem os que vinham atrás. Ides caminhava distraído ao lado de Aurora, um pouco à frente dela, enquanto Candinho, ao lado da mãe, seguia olhando, absorto, para o mato na beira da estrada. Era um lindo recanto com sombras e luzes e verdes. De repente Etelvina parou, fez sinal de atenção e apontou com sua sombrinha para o tronco de uma árvore. Ali, paradinho a observá-los, um bicho pouco maior que uma ratazana, de pelos curtos e lisos e cauda cotó, os olhinhos redondos e o focinho trêmulo, farejando o ar. Olharam-se por um instante, os humanos e o roedor. Candinho apontou seu dedo e exclamou, rindo de orelha a orelha: - “Serelepe!”, enquanto o animalzinho desaparecia no meio das folhagens. Ides pulou e gritou de contente, e até a sisuda Aurora abriu o seu melhor sorriso. Assim a viagem prosseguiu muito mais gostosa.