quinta-feira, 30 de junho de 2011

mais uma nota

A sequência do diário de viagem vai ser mantida, mas, entre a última postagem e esta, meu computador deu pau, fez um frio de zero grau por aqui, estou tendo provas de final de semestre na UEL, tive que terminar e entregar um jornal pra gráfica... Apenas um tempinho pra tomar fôlego e já já voltaremos...

domingo, 26 de junho de 2011

uma nota

É bacana essa coisa de fazer blog porque a gente sempre pode voltar a uma coisa que está lá atrás e corrigir ou melhorar. Faz alguns dias que estou postando aqui o diário da viagem que fizemos, eu e meu pai, por lugares da região norte do Paraná. Fui publicando o texto bruto, tal qual saía, até a parte da viagem a Abatiá e Santo Antonio da Platina, logo o último onde parou e de onde vai continuar a partir desta nota - mas, aqui, começa um movimento em duas direções: Vou voltar atrás, ao já escrito no início deste diário e completar, deixar mais preciso, mais bem construido e contado, e continuar daqui para frente, quando, finalmente, viajamos aos lugares onde tudo começou...

terça-feira, 21 de junho de 2011

diário de bordo - parte 2

Detalhes do cemitério de Cornélio Procópio

Candinho no pátio do Museu Histórico, ao lado de uma charrete e encostado numa canga de boi,
falando sobre charretes e cangas de boi

Angelita, eu, Dirceu, Candinho e Rui Cabral no restaurante

Candinho e Tia Clara na casa do Pedro

A viagem de Candinho pelo norte do Paraná começou na tarde de 12 de junho. Fomos direto para o hotel Donna Linda, administrado pelo Fernando, espanhol de Tenerife, Islas Canárias. Primeira noite um tanto difícil: cama estranha num local desconhecido numa esquina no centro de uma cidade, um senhor de 93 anos se levantando da cama para ir ao banheiro quatro ou cinco vezes durante a madrugada, a expectativa da aventura que aquela situação toda prometia. Dia seguinte fomos atrás do caso do apartamento: uma história complicada que, oportunamente, merecerá uma abordagem mais detalhada. Assim, no rápido e rasteiro, depois de 14 anos de pendenga judicial, finalmente o juiz tinha batido o martelo a favor de Candinho e a propriedade passava a ser, então, legalmente dele. A visita à advogada Vânia Queiroz de manhã, o almoço no restaurantezinho de seo Raimundo, a ida ao cartório de registro de imóveis, umas pequenas correrias a mais pela cidade e pronto: retorno ao hotel para o pernoite, o lanche da tarde no quarto, novela, noticiário, cama. Candinho dormiu mais cedo e eu fiquei um pouco mais vendo TV. Nessa noite dormimos melhor.
Segundo dia de manhã, toca para Cornélio Procópio: primeiro a Praça do Cristo em reforma, ponto mais alto da cidade, onde ventava gelado, tinha uns urubus pousados na mão esquerda da estátua e se via em torno uma paisagem magnífica. Depois a casa na Rua Rio de Janeiro (onde a família morou em parte das décadas de 1960 e 70), que manteve (pelo menos quando vista de frente e de fora) exatamente a mesma estrutura, com algumas mínimas modificações. A cadeia onde aconteceu o massacre nos anos 60 (1966? pesquisar isto). Perto dali o local aproximado onde o avô Cândido construiu a primeira casa deles na cidade, a Praça do Botafogo, o cemitério, almoço no restaurante da Praça da Matriz (a igreja – acho que agora é catedral – estava  em reforma internamente), o salão Dom Bosco, a casa da rua Piauí, 669, a primeira que Candinho comprou e hoje não existe mais. De volta ao cemitério para tentar localizar o túmulo do Dr. Francisco Lacerda Junior – que ninguém lá sabia onde ficava. Aproveitando que já estava ali mesmo, fotografei algumas tumbas e esculturas e percebi que quase não existem anjos, santos ou nossas senhoras entre elas: a grande maioria é de esculturas de bronze ou algum material que o imita e representa Jesus.
Antes de tomarmos a estrada de volta para Londrina, uma passada pelo prédio onde ficava a Sementes Canadá. O lugar está caido, parece que nunca mais recebeu uma manutenção desde a época que Candinho trabalhou lá, embora ainda esteja bem de pé quando visto de fora. Ali perto o lugar que tinha sido o Bosque Municipal, inaugurado na década de 1970 e onde hoje estão construídos os estúdios da RIC – TV Record. Toca pra Londrina. Lanche, TV e cama. Eu ainda fiquei algumas horas trabalhando na internet.
Quarta-feira de manhã, de volta ao escritório da advogada pra terminar de definir algumas coisas. De um momento para outro adquiri o status de procurador, o que quer dizer que me comprometo a representar meu pai em algumas situações civis nas quais ele não possa estar de corpo presente, enquanto que a advogada Vânia vai representá-lo legalmente. Depois a visita ao Museu Histórico Padre Carlos Weiss, onde nem entramos: ficamos mais de uma hora no pátio, vendo os objetos que ali estavam e esquentando ao sol naquela manhã fria enquanto esperávamos pela Angelita Marques Visalli (que chegou acompanhada do fotógrafo Rui Cabral), minha professora de História Medieval, diretora do museu e finíssima dama, que estava do outro lado da cidade, numa reunião na UEL. O almoço “da diretoria” no centro da cidade (uma ocasião encantadora), as despedidas e toca visitar os Arrebola de Morais.
A tarde na casa do Pedro: Tia Clara, irmã da mãe, Dione, Diomar e, claro, o dono da casa. Depois uma amiga da tia, Dirceu, o motorista e Junior, fiel amigo do Pedro. Lanche e amenidades. Fim do dia: hotel, TV, internet. Dia seguinte seria quinta-feira, 16 de junho. Nesse dia mergulharíamos na verdadeira viagem.

(as fotos seguintes ainda estão na máquina e a máquina está em Curitiba)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A viagem de Candinho

diário de bordo - parte1
Vista do morro onde está localizada a escultura do Cristo em Cornélio Procópio

Coisa de fotógrafo amador: o Cristo que domina a cidade de Cornélio,
mal enquadrado e fotografado contra a luz

Sábado, 18 de junho de 2011 completei 55 anos. Não tem sido uma vida fácil até aqui. Parece que fui fabricado com algum grave defeito que ainda não consegui delimitar ou definir, mas que já vejo de frente como uma coisa sem forma, unidade formada de partes desiguais que perfazem um todo que não parece fazer sentido. Talvez não seja importante – ou até seja impossível – dar nome a essa coisa, mas eu sou um ser de linguagem e sempre tento dizer... Mas deixa o defeito de fabricação e toda essa conversa sobre ele para depois ou para nunca, e que essa observação sirva assim como uma primeira introdução ao verdadeiro tema deste texto: nomear é dar forma ao mundo, colocar um solo sob os pés, definir e localizar – mas também é encarcerar a experiência, a coisa em si, talvez inominável, talvez além de toda a linguagem, dentro de uma construção, uma jaula de signos compreensíveis e confortáveis. Por outro lado, somos humanos, e, como tais, nos distinguimos pela memória e pela linguagem que usamos para registrá-la, para nos referirmos a todas as outras coisas e para comunicar entre nós, que compartilhamos dessa linguagem, tudo o que entre nós for comunicável.

Memorial

Dia 1º de janeiro de 2011 fez onze anos desde que, num dia de Ano Novo na casa de Tia Clara, eu comecei a conversar com meu pai Candinho. Esta é a data em que, de uma forma assim meio vaga, resolvi escrever um livro de sua história e com suas histórias. Meu pai completou 93 anos no último 7 de maio. No dia 12 de junho ele viajou a Londrina para tratar de negócios importantes e realizar uma jornada de sentimento e memória pelas suas origens. Cornélio Procópio, Abatiá – o ex-patrimônio do Lageado, onde Valdemar tombou morto na noite de 22 de maio de 1937 – e, finalmente, Santo Antonio da Platina, onde tudo começou em 1918 quando Candinho nasceu, ou ainda 20 anos antes, quando José Coelho (Coelho de Souza ou Souza Coelho) Vilas Boas, oriundo das Minas Gerais, chegou ao bairro rural do Ubá, pertencente ao município de Santo Antonio. Eu o acompanhei a cada momento, fiel escudeiro do velho senhor. Na manhã da sexta-feira, 17 de junho, ele e Dirceu partiram de Santo Antonio da Platina com destino a Curitiba, e eu fiquei por mais algumas horas, até a saída de meu ônibus para Londrina.

Em nome do Pai, do Filho...

Algum momento da quinta-feira, dia 9 de junho, eu fiquei sozinho e em silêncio e comecei a falar com Deus. Tentei ser o máximo sincero, me aproximar como se fosse de um camarada com quem eu tivesse uma coisa importante para resolver: comecei dizendo que por muito pouco é que eu ainda acredito Nele, mas que O acho indiferente ao nosso destino, pobres mortais afogados no vale de lágrimas desta existência. A vida da carne é muito difícil, o tempo todo tudo está por um fio, o custo é muito alto e a recompensa tem sido mínima. Tudo está sujeito à aniquilação, o mundo é uma estrutura frágil e sob constante ameaça, a humanidade é como uma experiência que não deu muito certo, parecemos mais uma espécie de câncer que atacou a pele e as entranhas deste lindo planeta. Eu estou deixando de acreditar que qualquer coisa valha a pena. Pode ser uma descomunal arrogância da minha parte, acho que é mesmo, mas eu vou exigir uma prova Sua, Camarada; seja como for, venha como vier, eu peço um presente de aniversário: que Você me faça acreditar que ainda vale o esforço, porque eu estou cada vez mais desiludido, desacreditado e de saco cheio, achando muito sem graça a maior parte disso tudo, e nada podendo fazer a respeito, eu sozinho e minúsculo, menos que microscópico. Será que tudo se resume a sobreviver enquanto não chega o fim?...

... sei lá se de minha conversa com o Senhor do Universo ou qualquer outro fator estruturalista, materialista ou determinista – na verdade isso tem pouca importância – dia seguinte recebi a notícia que meu pai chegaria no domingo à tarde, e eu dispunha de dois dias pra me articular para sua vinda, e aconteceu tal qual o anunciado: ele chegou, conduzido pelo Dirceu, lá pelas 16h e alguns minutos de 12 de junho; nos instalamos e isso foi o começo da aventura: cinco noites dormindo com Candinho no mesmo quarto, os dias que se seguiam a essas noites andando juntos por onde ele queria e precisava andar, até a manhã da sexta-feira, dia 17, quando nos despedimos em Santo Antonio da Platina. Tive nisso tudo muita honra e muito gosto, e mais ainda: foi uma das maiores experiências de minha vida, uma daquelas que até poderia ou pode ser contada, convertida numa história com sequência e significado (é  que vai acontecer, e o que está sendo dito aqui), mas cujo alcance ultrapassa os limites da minha linguagem consciente, do meu entendimento e da compreensão que tenho da vida. Foi uma viagem reveladora e surpreendente por um recôndito de minha memória, da memória de Candinho, da nossa memória compartilhada. Vi, fotografei e anotei os lugares, os personagens e alguns novos dados que surgiram de depoimentos de Candinho e de outrem e da presença física minha e de meu pai nos lugares de suas origens e de alguns momentos fundamentais de sua vida. Em Santo Antonio da Platina tentei localizar as coisas no espaço e imaginar aquela cidade de 2011 nos anos 20 do século passado, naquele mesmo vale dominado por aquele mesmo morro, mais ou menos com aqueles mesmos quarteirões traçados sobre aquelas mesmas colinas suaves em torno da Igreja Matriz no centro. Foi revivido, por meu pai e por mim,o Arquétipo do Pai e do Filho, o mito do retorno às origens, a viagem para dentro de Si Mesmo. Houve um encontro surpreendente no centro de Santo Antonio da Platina que aqui apenas cito e é assunto para uma próxima postagem.

Mas vale dizer que, nas horas que ainda permaneci na cidade depois que Dirceu e Candinho tomaram a estrada para a capital e eu me vi passeando com a minha amiga Bia nos campos e colinas próximos à área urbana, bateu uma percepção do infinito, da fita dando a volta sobre si mesma: aquele mesmo tempo que ficara no passado recomeçando no presente: Ouroboros, a serpente dos alquimistas que morde a própria cauda, uma volta completa da roda do tempo circular. Eu estava na terra de meus ancestrais (quase) míticos, pisando os mesmos lugares que eles poderiam ter pisado, depois de uma jornada ao lado do senhor daquela memória, depois de uma série de acontecimentos sem nenhuma conexão aparente que se conectaram num todo ali presente, um momento luminoso de revelação existencial, uma resposta de Deus, o meu presente de aniversário, muito maior e mais significativo do que eu poderia sonhar. Pode parecer um estrondoso exagero melodramático, que seja então, mas ali se consolidou o destino e eu toquei no meu propósito de vida. Eis que o começo nunca terminou de acontecer e ali começava de novo.

Candinho é um magnífico camarada, um extraordinário parceiro de viagem, o depositário fiel de uma memória de valor inestimável, é tudo o que se possa dizer de bom dele. É um velhinho frágil e preocupado – preocupa-se com tudo e com todos, comigo também (eu, o filho do meio e alternativo que ainda não se acertou na vida e já está ficando velho), e eu com ele com toda a certeza. Tudo começou em Santo Antonio da Platina em 1898, vinte anos antes de Candinho nascer na manhãzinha de 7 de maio de 1918, mas ainda antes, na região de Ubá, em Minas Gerais, onde nascera Cândido Bonifácio de Souza, o Cândido Coelho (segundo Candinho) em 1884... Tudo começava de novo naquela manhã radiante de 16 de junho de 2011.


Candinho na praça do Cristo. Ao seu lado o Dirceu, valente motorista e bravo camarada.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Notas sobre a viagem de Candinho

Candinho no final da manhã de hoje, 14 de junho de 2011, num flagrante da viagem sentimental - mas também pragmática - pelos locais de seu passado e negócios do seu presente. Aqui, em plena praça do Cristo, Cornélio Procópio, cidade onde chegou em 1937 e saiu apenas em 1975. Estava um vento bruto e gelado lá em cima e - não dá pra ver direito na foto - tinha dois urubus pousados na mão esquerda da escultura. Dirceu, o valoroso motorista e valete comentou que faria mais sentido se fossem pombas...

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Allceu e Alfeu

(esta história deve ter sido contada por Candinho numa das primeiras gravações que fizemos, há uns 10 anos ou mais. Como o volume de material gravado é muito grande, ficou esquecida durante algum tempo... Quem se lembrou dela e a resgatou do poço das histórias quase esquecidas foi minha irmã, a Etel Frota, que precisava de uma história assim (assim como? - Assim como esta) para não sei bem qual objetivo. Não fiz muita coisa no texto dela, quase que só acrescentei uma introdução e um fecho e mexi um pouco em algumas construções de frases, sem grande motivo, só para ficar com mais cara de uma coisa que eu próprio teria escrito. O  causo teria tudo para ser uma anedota,  se  não fosse uma tragédia... Chega de introdução. Vamos à triste história dos irmãos Alceu e Alfeu)...

Era domingo e a manhã já ia alta. A cidadezinha estava naquele silêncio, naquela pasmaceira... Movimento e ruído, só na Praça da Matriz e na igreja, onde os fiéis acorriam, conclamados pela voz metálica dos sinos que anunciavam as missas. Na casa de Cândido também estava tudo sossegado: o pai estava no barracão da serraria desde que o dia tinha clareado; Etelvina e Aurora já haviam assistido a primeira missa do dia com os dois mais novos e estavam na cozinha preparando o almoço – Aurora estava pondo o feijão para cozinhar e Etelvina preparava para fritar uns grandes pedaços de carne de porco, enquanto Candinho e Ides, sentados a um canto da mesa, desenhavam letras nas folhas de um caderno de caligrafia sob a supervisão das duas. Daniel e Valdemar estavam passeando na Praça da Matriz com outros garotos da cidade, olhando a saída da missa e já prestando a maior atenção nas meninas que por ali passavam com suas famílias. Era um domingo de sol, como qualquer outro, mais ou menos 10 da manhã, quando alguém chamou da frente da casa. Cândido foi atender e, pouco depois, entrou com o tio Euclides, irmão de Etelvina, que morava não muito longe dali, no bairro do Taquaral, e tinha resolvido, assim que acordara naquela manhã de domingo, que iria a cavalo até Santo Antonio da Platina para visitar a irmã, o cunhado e a sobrinhada, e filar uma bóia na casa deles. Pouco depois, quando Daniel e Valdemar retornaram de seu passeio, encontraram a cozinha cheia de gente, colocando a prosa em dia e bebericando café, todos conversando animados, menos os dois menores, que sabiam que não deviam se meter na conversa dos mais velhos, a não ser se fossem solicitados. Etelvina fritava a carne na grande frigideira de ferro e Aurora temperava o feijão sem deixarem de participar da animada conversação. Talvez tenha começado na mesa do almoço, talvez tenha sido depois que todos se levantaram, Candinho não sabe mais. Ele se lembra que o tio Euclides deu o arremate à narrativa na varanda, depois do cafezinho adoçado com rapadura. Era uma história que poderia até ser engraçada, se não fosse trágica. Havia acontecido pouco tempo antes, no Taquaral, onde o tio morava. Ele mesmo não havia presenciado os acontecimentos, mas ali era uma comunidade pequena, todos se conheciam e a história era, sem dúvida nenhuma, verdadeira.
Existiam muitos sitiantes naquele bairro, cada um tocando sua terrinha e suas atividades. Quando qualquer um dos proprietários dali se via às voltas com um excesso de trabalho provocado fosse pelo que fosse, ele promovia um mutirão para resolver o problema. Isso abreviava o tempo que seria gasto naquela tarefa e dava resultados muito bons em muito pouco tempo. Acontecia principalmente em épocas de colheita, ou quando o mato estava tomando conta das roças. O sitiante reunia todos os vizinhos, um trabalho conjunto de vinte, trinta, até mais pessoas; fornecia uma alimentação de sustança enquanto durasse o mutirão e até uma cachacinha ao final da empreitada.
Aquela foi a vez do senhor Cunha (mas como tinha gente chamada Cunha em Santo Antonio da Platina! – Será que eram todos parentes?) promover um mutirão reunindo a vizinhança, porque ele tinha passado um período enfermo e o mato estava tomando conta do seu cafezal. Lá compareceram Alfeu e Alceu, uma dupla de irmãos muito conhecidos na região. Alfeu era magrão e seco, queimado de sol, muito brincalhão, safado, sempre inventando histórias engraçadas e provocações. Alceu, ao contrário, era branco e um pouco rechonchudo, tímido, ingênuo e amedrontado. Tinha medo de tudo, mas, acima de qualquer outra coisa, tinha medo de cobra. Embora muito diferentes (ou talvez por isso mesmo) os irmãos eram inseparáveis. Não se desgrudavam de jeito nenhum e nunca brigavam. Estavam sempre juntos nas peraltices ou nas realizações do bairro. Frequentemente caçavam ou pescavam nos matos próximos e conviviam como os melhores amigos do mundo.
Eles atenderam ao chamado do vizinho e se empenharam na empreitada da limpeza e capina do cafezal. Depois de algumas horas o trabalho já ia adiantado e, em certo momento, o Alfeu se afastou um pouco, como se fosse procurar um lugar para fazer suas necessidades, mas o que ele tinha em mente era outra coisa: ele teve a infeliz ideia de pregar uma peça no irmão. Alfeu encontrou uma taquara, rachou-a e fez uma vareta de uns 40cm de extensão por 2,5 de largura. Em uma das extremidades recortou, com capricho de escultor, duas pontinhas agudas, a uns 2 cm uma da outra. Era, sem tirar nem por, a embocadura de uma cobra!
Alceu estava limpando o mato debaixo de um pé de café, agachado, quando o Alfeu veio por trás e cutucou com força o seu calcanhar com a vareta. O Alceu se apavorou, deu um pulo, gritou desesperado e cambaleou alguns metros, caiu sentado no chão e agarrou o tornozelo machucado. Com os olhos esbugalhados, pálido, viu os dois pontinhos de sangue onde a taquara o havia picado. Começou a gritar desvairadamente e a chamar por socorro, o que acabou atraindo o resto do pessoal que estava trabalhando próximo dali. Alfeu primeiro se fez de desentendido, fingiu que não era com ele; depois, assustado, foi apoiar o irmão. Olhando o estado do pobre, começou a achar, pela primeira vez na vida, que talvez tivesse ido longe demais e, embora estivesse quase arrependido, não desfez o que tinha feito. Aquilo não haveria de dar em nada e, se ele confessasse, poderia até ser agredido pelos outros ou pelo próprio irmão, com razões de sobra.
Uma turma levou o Alceu carregado para a casa do senhor Cunha, enquanto um dos homens picava carreira até Santo Antonio da Platina em busca do médico, Dr. Claremont. Deitaram o ferido numa cama, lavaram o ferimento,, improvisaram com um pano de prato um torniquete logo acima do tornozelo dele e tentaram acalmar o rapaz. Alceu chorava baixinho, em alguns momentos se desesperava e começava a gritar e, nessas horas, chegava quase a perder a consciência, necessitando ser segurado pelos amigos que não saiam de volta dele. Alfeu sentiu que estava começando a se descontrolar; ele chorava também, intermitente, começando a se sentir sem chão e ainda sem coragem para revelar a besteira que tinha feito.
Essa agonia já durava umas duas horas, quando um dos homens sugeriu que um grupo deles voltasse até o cafezal para tentar encontrar a cobra que mordera o Alceu. Argumentou que o médico, quando chegasse, precisaria saber que tipo de cobra era para poder ministrar o soro. Enquanto decidiam quem iria, o Alceu piorava a olhos vistos. Já não gritava nem chorava, apenas gemia baixinho e empalidecia. Alfeu se juntou ao grupo que iria voltar ao cafezal e, quando se puseram a caminho destrambelhou a falar e contou tudo como tinha acontecido de verdade. Chorava sem parar e perguntava que raio era isso que estava acontecendo, que mais parecia um pesadelo. Ele esperava uma reação violenta dos outros, mas, em vez disso, os homens se entreolharam incrédulos, e um deles falou que era difícil acreditar nisso quando lembrava do estado em que tinham deixado o pobre Alceu, quase defuntando, que Deus nos livre! E disse ainda que, se isso era mesmo verdade, o Alfeu que se apressasse em localizar a taquara para mostrá-la ao irmão e encerrar de vez com tamanha maluquice.
Embora já tivesse começado a escurecer, não foi difícil para o Alfeu localizar o pedaço de taquara perto do pé de café que o irmão estava limpando na hora do susto. Correu de volta para a casa do senhor Cunha e mostrou a vareta para o Alceu, que parecia já semi-inconsciente. Alfeu desatou a chorar feito criança, rezava em voz alta pedindo, com a voz entrecortada por soluços, perdão a Deus e ao irmão. Era de dar pena ver aquele rapaz sempre tão brincalhão e alegre num estado de desespero tão sem fundo.
Mas nada do que se dissesse ou fizesse tinha qualquer efeito sobre o Alceu, que parecia estar entrando num mundo inacessível pelo lado de fora, e começava a emitir uns ruídos estranhos com sua garganta, uma espécie de gorgolejo, e se mostrava a cada minuto mais largado, entorpecido, deslizando irresistivelmente para uma inconsciência tenebrosa. Já era tarde da noite quando o rapaz que tinha ido à cidade em busca do médico voltou informando que o Dr. Claremont tinha ido atender a uma emergência numa safra de porcos perto do rio das Cinzas e que, talvez, só estivesse de volta dia seguinte pela manhã.
A essa altura, o pânico com o estado de saude do Alceu já tinha tomado conta de todos. Decidiram então que o levariam para jacarezinho, onde certamente o atenderia o Dr. Gustavo Lessa, e onde a farmácia do Otacílio Fortes sempre tinha um bom estoque de soros antiofídicos, o que facilitaria o tratamento do rapaz – que todos ainda acreditavam que tivesse sido picado de cobra – e o Alfeu, que sabia que isso nunca havia acontecido berrava, o mais alto que seu pranto descontrolado permitia, que isso era inútil, pois nenhuma cobra nunca tinha mordido o seu irmão. Ninguém prestava atenção a ele, ninguém prestava atenção em ninguém nem em nada. Parecia que todos tinham enlouquecido.
Alguém trouxe a carreta, alguém foi procurar os bois. Foi no momento em que começavam a atrelar o segundo boi, lá pela 1h da madrugada, que o Alceu soltou seu último suspiro e parou de se mexer.
O tio Euclides tinha conhecido muito bem os dois irmãos, era afeiçoado a eles – como, aliás, todo mundo naquela redondeza. Já tinha escutado dezenas de histórias e presenciado muitas das brincadeiras do Alfeu, e por isso acreditava na veracidade do relato a ponto de atesta-la com sua palavra de honra. Quando foi perguntado sobre o destino do Alfeu depois da tragédia, ele dirigiu seu olhar para baixo e seu semblante escureceu e ficou nublado, como um céu armando tempestade. Ainda demorou a responder, escolhendo as palavras, que melhor destino teria tido se tivesse morrido ou ficado louco – porque os mortos se afundam no esquecimento, e os loucos podem inventar histórias que tapem os buracos das suas dores. O Alfeu não inventou história alguma, permaneceu vivo, lúcido e calado, cozinhando no fogo lento da culpa. Durante meses não sorriu, não conversou com ninguém nem botou a cara para fora de casa para fazer nada; mal comia ou dormia. Até que, certa madrugada saiu, sem se dar ao trabalho de fechar a porta da frente, e desapareceu no mundo como se nunca tivesse existido. Nunca mais ninguém ouviu falar dele...

Tio Euclides permaneceu sombrio depois dessa história, e ficou quase que completamente calado até encerrar a visita e ir embora dali. A narrativa do triste destino dos irmãos adquiriu, durante algum tempo, contornos de uma presença no meio da família, como se fosse uma narrativa exemplar, uma fábula com moral, uma parábola ou coisa que as valha.

entre parenteses

Esses dias a coisa andou animada por aqui. A novidade digna de nota é que o nosso herói, Candinho, mês e pouco depois de completar 93 Viajou de Curitiba a Londrina para tratar de seus negócios... Agora ele está no quarto do hotel assistindo novela (eu não poderia hospedá-lo porque moro numa espécie de canteiro de obras, pouco saudável para alguém de idade tão avançada) enquanto eu atualizo o blog...  Candinho velhinho é um capítulo à parte, que será contado no momento certo... Esta postagem foi só para registrar.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

anotação de passagem

Algum tempo sem postar aqui. Trabalhos se interpondo, coisas acontecendo, o frio se instalando. Hoje passo apenas para dar uma justificativa ligeira. Para os próximos dias uma história impressionante e emocionante: Alceu e Alfeu.