quarta-feira, 20 de abril de 2011

Fala Candinho:

Como era um município recém criado, as ruas de Santo Antonio da Platina eram sem revestimento nenhum, raramente com calçada. A maioria das casas era de madeira, algumas poucas construidas em alvenaria e com cobertura de telhas de cerâmica. A cidade, acredito, não tenho uma precisão, devia ter, no máximo, na época, de 3 a 4 mil habitantes, algumas ruas já delineadas e duas praças: a Praça da Matriz tinha um coreto no meio, onde a banda Lyra Platinense tocava duas vezes por semana, e os jovens e as famílias iam flertar e fazer footing... Uma quadra para baixo ficava a praça da cadeia, chamada assim porque existia uma cadeia de madeira situada bem no centro dela – a residência e a casa comercial de meu pai viriam a ser ali algum tempo depois. O cinema, que abriria em 1925, ficava entre as praças da cadeia e a da matriz. A prefeitura ficava também na esquina da Praça da Matriz. Quando chegamos em Santo Antonio da Platina, em 1923, meu pai havia vendido o sítio no bairro do Ubá e se associado a uma serraria em Santo Antonio da Platina com o senhor Fernandes. Com a entrada de meu pai como sócio, que havia investido certa importância em dinheiro, a função principal era de localizar madeira para compra e o transporte das toras para a serraria. Meu pai contava também com um ex-escravo de família, que tinha sido de meu avô, o Véio Dito, que era o encarregado do transporte dessas madeiras. O Véio Dito então percorria a região de Santo Antonio da Platina e efetuava inicialmente a compra das perobas ainda não derrubadas e outras madeiras de lei, e meu pai fazia uma visita posterior e efetuava os pagamentos, promovia a derrubada dessas árvores e o corte das toras de acordo com as necessidades e a colocação nas carretas, onde o Véio Dito tinha uma função de carreiro, como era chamado aquele que conduzia as carretas de boi, até levar para Santo Antonio da Platina, na serraria, que ficava em meio a um pasto, ao lado direito da entrada de quem vinha da região de Jacarezinho e do bairro do Ubá, já mencionado. Além do barracão e do pasto, tinha uma determinada área desse terreno reservada para o plantio de cana, que servia para a alimentação subsidiária dos bois que iam nas carretas para puxar madeira. Na serraria passamos a residir numa construção anexa... Meu pai havia trazido também do bairro do Ubá uma quantidade de algodão que havia sido colhido e não havia sido comercializado. Ele construiu uma espécie de tulha com madeira da própria serraria, que servia de cama para nós: eu, meu irmão Edward, meu irmão Valdemar, meu irmão Daniel. Nós subíamos por uma escada até o alto dessa tulha, era colocado um lençol sobre o algodão e cada um se arrumava de alguma forma para dormir, e era, por sinal, muito agradável, porque estava numa época de bastante frio e o algodão nos mantinha aquecidos, e ainda uma coberta era colocada sobre nós.

Nessa época em Santo Antonio da Platina, a família mais importante que morava na cidade eram os Capucho. Tinha também os Rezende, o capitão e a sua família... Como era mesmo que se chamava aquele capitão? Branco Pombo tinha uma casa comercial, os Nepomuceno, nossos parentes, também tinham casa comercial, a família Milani de Moura, Pedro Claro de Oliveira, família Giovanetti, que, hoje em dia, um dos descendentes tem cartório em Curitiba, tinha ainda a família do Cícero Ferreira Dias, que, por sinal, foi meu padrinho de batismo. Também uma família de bastante destaque era a família Borges Monteiro, por sinal eram dois irmãos os chefes da família, o Manuel Borges Monteiro e o João... O Manuel, conhecido por Maneco, era gerente da casa Monteverde, filial de uma casa de igual nome sediada em Jacarezinho. Tinha o capitão José Cândido Teixeira, também... Talvez seja esse o capitão que eu não lembrava agora pouco...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Passagem - O Serelepe

Um dia, em 1923, quando Candinho estava com 5 anos, o sítio do Ubá foi vendido e eles se mudaram para Santo Antonio da Platina, onde o patriarca Cândido tinha se associado numa serraria com um certo Sr. Fernandes (de quem Candinho não sabe mais nada), que havia entrado com a maior parte do capital enquanto Cândido ficava encarregado do trabalho de localizar as árvores no meio da mata, providenciar para que fossem derrubadas, serradas no local em pedaços de tamanho adequado para o transporte, embarcadas nas carretas e transportadas até a serraria, onde a madeira era desdobrada em tábuas e outras peças – dependendo da qualidade e o fim para o qual se destinava – que seriam, posteriormente, utilizadas nas construções da região. Para realizar esse trabalho Cândido contava com, além de seu espírito empreendedor, o Véio Dito, seus carros, suas juntas de bois e alguns homens contratados que tinham que ser fortes e hábeis no uso de machados e serras.

Então, certa madrugadinha fria de meados de maio, a família acordou mais cedo que o costume, e todos tiveram que colaborar para arrumar o que ainda restava da tralha da família sobre o carro de boi. Cândido percorreu a casa mais uma vez para ver se não estavam deixando nada para trás, trancou-a, entregou a chave ao vizinho que iria cuidar até a chegada do novo morador, rodeou mais uma vez a caravana fazendo as últimas verificações, sentou-se ao lado do Véio Dito e deu a ordem de partida. Ali se iniciava a última viagem da mudança para a cidadezinha a seis quilômetros de distância.

Candinho, que com cinco anos de idade completados poucos dias antes, tinha nascido e vivido toda sua vida no Ubá, ia à frente, com a mãe e os irmãos, explorando o mundo, e a carreta carregada seguia logo atrás conduzida pelo Véio. Cândido ia atento ao andar do carro e ao equilíbrio da carga. Às vezes proseavam alegremente, às vezes falavam poucas palavras sérias, ou passavam longos minutos calados. Seguiam num passo firme e constante, mas tiveram que parar algumas vezes para ajeitar alguma amarra que tinha afrouxado num solavanco.

Era uma manhã quase fria, começo de um dia claro e bonito de sol. Daniel e Valdemar, de treze e onze anos, iam bem à frente do grupo, enquanto Etelvina e Aurora caminhavam com os mais novos. Apesar de cansativo, era quase um passeio. Entraram numa curva fechada no carreiro de terra. Por um momento estiveram dentro de uma bolha de silêncio só penetrada pelos sons do mato em volta: não viam nem ouviam os que estavam à frente nem os que vinham atrás. Ides caminhava distraído ao lado de Aurora, um pouco à frente dela, enquanto Candinho, ao lado da mãe, seguia olhando, absorto, para o mato na beira da estrada. Era um lindo recanto com sombras e luzes e verdes. De repente Etelvina parou, fez sinal de atenção e apontou com sua sombrinha para o tronco de uma árvore. Ali, paradinho a observá-los, um bicho pouco maior que uma ratazana, de pelos curtos e lisos e cauda cotó, os olhinhos redondos e o focinho trêmulo, farejando o ar. Olharam-se por um instante, os humanos e o roedor. Candinho apontou seu dedo e exclamou, rindo de orelha a orelha: - “Serelepe!”, enquanto o animalzinho desaparecia no meio das folhagens. Ides pulou e gritou de contente, e até a sisuda Aurora abriu o seu melhor sorriso. Assim a viagem prosseguiu muito mais gostosa.

O pedido da mão de Etelvina

Candinho se lembra que, pelo menos uma vez, Etelvina comentou, cheia de bom humor, como ela tinha sido pedida em casamento: teria sido, talvez, no interior de São Paulo, a meio caminho entre as Minas Gerais, estado de origem de todos eles, e o Norte Pioneiro, onde acabariam por se instalar, não dá mais para saber. Tinha sido vários anos antes, num começo de tarde quente. Ela estava nos fundos da casa da propriedade do pai, limpando a cozinha de chão batido com a vassoura de piaçava, enquanto ele estava na varanda, levando uma prosa com um moço que havia chegado um pouco antes. Ela conhecia aquele moço de vista e sabia que ele era o Cândido Coelho, filho do José Coelho, que era também pequeno agricultor na região. Lá pelas tantas o pai gritou lá da frente: -“Etelvina, vai buscar água na bica.”
Ela então largou o que estava fazendo, pegou o balde na porta da cozinha e deu a volta por fora da casa. Quando passava pela frente da varanda percebeu, com o rabo do olho, que o moço que estava sentado ao lado do pai a observava com olhos atentos. Continuou e, alguns passos depois, escutou a voz do pai perguntando: -“Aquela ali serve?” – ao que o moço prontamente respondeu – “Serve sim senhor.”
“- Então vamos tratar o casamento”...

Tio Nepomuceno, criador de cavalos

O tio Nepomuceno também era pequeno proprietário no Ubá, e julgava-se criador de cavalos. Ele comprava um potro, fosse macho ou fêmea, por, digamos, vinte dos dinheiros da época, e tratava-o muito bem, alimentando o bicho com arroz, milho, canjica, forragem da melhor qualidade, deixando um bom pedaço de pastagem só para ele durante um ano, ano e meio, quando o animal ficava do tamanho, idade e peso certos para ser domado para montaria ou para lida. Gastava mais uns vinte, vinte e poucos com isso. Vendia então por trinta e dizia, todo orgulhoso: - Ganhei dez!
Uma nota

Fazer uma biografia, principalmente baseada nos testemunhos de uma pessoa bem idosa para os nossos padrões não é trabalho fácil. Às vezes ficam lacunas que a gente tem que preencher com a imaginação, ou surgem pontos duvidosos que, nove décadas depois, ficam quase impossíveis de serem confirmados. Candinho, anos atrás, disse que a tia Eurodites só havia sobrevivido por poucos dias após seu nascimento – mas, há pouco tempo, deu quase a certeza de que ela chegou aos dois anos de idade ou quase isso ou pouco mais, tendo se mudado com a família para a casa da serraria em Santo Antonio da Platina e lá falecido, sendo enterrada pelo Véio Dito não na propriedade do Ubá (que então já não existia), mas por ali mesmo, no terreno onde a família estava instalada, ao lado da entrada da cidade. Como nada disso é uma verdade absoluta e comprovável, a versão original será mantida, feita esta ressalva.