sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A Serraria

(Esta postagem, cronológicamente, está entre "Algumas daquelas lembranças de infância que nunca se apagam... " e "Véio Dito". Não que isso seja importante, mas é bom que conste).

Os sócios da serraria acharam por bem comprar uma máquina bem grande e potente que, segundo as informações que Candinho tem, era produzida em Botucatu, no estado de São Paulo. Parece que este foi um dos principais motivos de se fazer a sociedade entre Cândido e o Senhor Fernandes. O ponto mais próximo onde o trem chegava carregando o bruto era Ourinhos, e de lá até Santo Antonio, distante cerca de cinquenta a sessenta quilômetros, tinha que ser puxado por juntas de bois. Cândido e o véio Dito, mais Daniel de contrapeso, viajaram para Ourinhos numa manhã de tempo fechado já no começo de um mês de Junho com friozinho de Inverno, conduzindo trinta e duas juntas, ou sessenta e quatro bois de tração que seriam atrelados dois a dois em uma carreta reforçada para puxar o vapor de muitas toneladas. Foi uma tarefa difícil e pesada, que exigia a máxima atenção para que nenhum detalhe desse errado: eles demoraram quase um dia para carregar e quatro dias para vencer a distância de volta pelas estradas e carreiros da região. Havia sempre, no máximo, oito juntas puxando a carga, enquanto que as demais iam acompanhando atrás, prontas para substituir as que se cansassem. Quando estavam próximos a pontes, rios, ou qualquer outro lugar onde houvesse um declive na estrada, o comboio parava, a carreta era escorada e destacavam-se quatro ou cinco das juntas descansadas que eram postas para puxar a carga ao contrário, freando o movimento natural para baixo e evitando assim que tudo aquilo desandasse e acabasse em um desastre incontrolável. Chegando a Santo Antonio da Platina, foi mais quase um dia inteiro de trabalho, na verdade dois, quase três, se for para considerar o tempo que demorou depois para terminar de chumbar o conjunto e ajustar as correias e rodas dentadas que trabalhariam com a força daquela máquina. Entre vinte e trinta homens tiveram que ser utilizados nessa função. Trabalhando com alavancas, cordas e toras não beneficiadas como rolamentos, empurraram/puxaram o vapor até a plataforma onde seria definitivamente fixado numa pesada sapata e ligado pelas correias a sólidas polias e engrenagens de madeira que movimentavam as serras e esteiras. Foi uma operação grande, trabalhosa e perigosa, quase épica para as condições vigentes, mas nada de mais sério aconteceu, o trabalho foi realizado e, naqueles dias mesmo, a serraria começou a funcionar a todo vapor.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Primeira do Ano

          Ano passado aconteceu muita coisa que, se eu me considerasse um escritor mesmo, acho que teria obrigação de contar, narrar, refletir sobre... Talvez um dia eu faça isso, mas não agora. É quase impossível pensar "bem" sobre coisas muito recentes, ou que ainda não terminaram de acontecer. Em Agosto de 2011, Candinho quase se foi. Não seria de surpreender ninguém se isso acontecesse (afinal, ele já tem 93 anos), mas não foi ainda desta vez, e a torcida é para que não seja tão já, enquanto ele ainda puder permanecer vivo com um mínimo de conforto e qualidade... Já são vários meses sem publicar nada, a última postagem aqui foi feita em meio à crise, não houve muito tempo ou cabeça fria para se pensar em mais nada...
          Bem, agora é outro ano. Os fatalistas de plantão dizem que o mundo acaba no dia 21 de dezembro. Os otimistas incorrigíveis místico/esotéricos falam (de novo) de grandes mudanças, grandes esperanças, grandes possibilidades... Nosotros preferimos ficar no meio do caminho: nem vítimas de um destino imutável que nos oprime, nem Iluminados eleitos para lançar as bases da Nova Era... Mais para pessoas comuns, que fazem o que podem, que batalham para dar à vida algum sentido além das fórmulas prontas, dos discursos acabados... Continuemos. É tudo o que podemos fazer.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Mais histórias e mais personagens

Pesca de peneira
    
Em Santo Antonio da Platina da década de 1920, cada um se divertia como podia. Os filhos de Cândido e os que andavam sempre com eles também gostavam de aprontar, mas havia outras turmas que aprontavam mais. Quando faziam as pescarias, era quase uma coleta de bagres, lambaris e outros peixes menores através de peneiras em córregos que existiam ali nas redondezas. Havia, pela região toda, muitos moinhos de fubá e monjolos, todos movidos a energia hidráulica pela água que era desviada do curso dos ribeirões através de umas valas rasas, que ficavam repletas de pequenos peixes, como lambaris, bagres e cascudos. A turma, quase sempre liderada por um dos rapazes mais velhos, Daniel ou Valdemar, escolhia um dos canais, dividia-se em dois grupos menores que se afastavam cerca de quatrocentos a quinhentos metros um do outro ao longo do canal e começavam a pescaria: os maiores entravam na vala com as peneiras e iam caminhando um em direção ao outro que estava lá longe, passando a peneira pelo fundo até recolher os peixes, que eram jogavam nas margens, onde os pequenos os recolhiam ainda vivos nos embornais. Iam um em direção ao outro, até que se encontravam em algum ponto e davam por encerrada a pescaria. Era comum recolherem, nessas ocasiões, vinte a trinta quilos de pescado, o que, na volta para casa, mobilizava toda a família para a limpeza e preparo, que consistia em salgar, fritar e guardar para a conservação em grandes latões cheios de banha de porco, já que não havia geladeiras naquela época.

Os cães e o gato
 
            Teve um dia que esse pessoal saiu para pescar de peneira numa dessas valas, e, quando estavam se aproximando do ponto escolhido, pouco antes de chegarem, ouviram uma balbúrdia infernal, latidos de cachorros e miados desesperados. Candinho foi na direção da barulheira, e não teve que procurar muito para ver dois cachorros que estavam pegando um gato, cada um por um lado. O pobre felino já estava todo machucado e completamente desesperado, disputado pelos dois cães, que o mordiam e puxavam. Ele se defendia como podia com suas unhas, mas a desvantagem era clara. O menino foi chegando perto gritando, chutando os cachorros e tentando separar os bichos; agarrou o gato e tentou puxa-lo para fora das bocas dos cães, mas o animalzinho, apavorado e alucinado de dor como devia estar, deu uma unhada na mão de Candinho que rasgou a carne bem fundo, machucou bastante, arrancando um bocado de sangue. Candinho largou imediatamente o bicho e se afastou um pouco. Sua mão estava doendo muito e o sangue corria abundante. Enquanto ele tirava a camisa e a enrolava na mão para tentar estancar a hemorragia, viu que o gato estava começando a entregar os pontos. Todo ferido e sangrando por inúmeros ferimentos, ele parou de se debater, silenciou e foi estraçalhado pelos cães. Candinho tinha enrolado a mão em sua camisa e estava olhando triste para aquela cena sangrenta quando os outros chegaram, logo em seguida. Um deles voltou com Candinho até a cidade para fazer um curativo de verdade. O garoto passou vários dias impressionado com a morte do pobre gato, e muito frustrado por não ter podido impedi-la.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

histórias e personagens

São Paulo/Paraná Railway

1925, a ferrovia estava chegando perto dali. Daniel conseguiu trabalho como vendedor de balcão no armazém que fornecia mantimentos para os trabalhadores. A estrada de ferro avançava a partir do entroncamento de Marques dos Reis, no estado de São Paulo, com destino aos Campos Gerais onde encontraria com a linha que subia desde o Rio Grande do Sul. Daniel acordava muito cedo, saía ainda noite alta, por volta das quatro da manhã, e seguia a pé até a estação Nova Platina, a última onde a linha havia chegado e de onde a linha que chegava do estado vizinho se dividia em duas, lançando um ramal para o centro do estado e outro para oeste, pelas brenhas do Norte do Paraná, região de densas florestas cheias de boas madeiras, terra fértil e água abundante, pontilhada aqui e ali com povoados, pequenas propriedades, grupos de índios, grileiros, rotas de tropeiros, um minúsculo destacamento militar na Vila de Jathay, lá na borda do Rio Tibagi, uma ou outra missão religiosa... Talvez não exatamente nessa ordem de colocação ou importância, mas com todos esses elementos ali presentes. Daniel não sabia de nada disso. Ele trabalhava duro o dia todo naquele balcão, e também recebendo mercadorias, fazendo pagamentos, limpando, organizando o estoque, tudo o que se fazia num entreposto daquele tipo. O comércio era uma concessão da São Paulo – Rio Grande Railway (tocada por alguém que Candinho não sabe dizer quem), empresa de capital misto ligada à Companhia de Terras do Norte do Paraná, subsidiária da Paraná Plantations que estava então começando a executar um projeto de expansão por aquelas novas terras (quase) sem dono e que viria a adquirir o controle acionário da empresa pouco tempo depois, em 1928. Bem ali, no ponto marcado pela estação e pelo armazém, começava o ramal que penetrava pela nova região, que estava nos primórdios de sua colonização organizada, e disseminaria, ao longo da linha, pequenos povoados que se tornariam, nos anos futuros, grandes cidades, chegando a Londrina (que ainda nem sonhava em existir) em mais uma década e depois ainda a Maringá, Cianorte e mais além... Era a base de uma ampla exploração agrícola e imobiliária dos ingleses, que tinham enormes interesses naquelas terras. Comentava-se, já desde o século anterior, antes mesmo da Guerra do Paraguai, que o objetivo deles era fazer uma ligação ferroviária entre os Oceanos Atlântico e Pacífico, para estabelecer uma linha direta entre os negócios do Reino Unido no Ocidente e no Oriente, economizando nas despesas do transporte naval e ainda mantendo o monopólio sobre a construção de estradas de ferro na América do Sul. Para esses fins, a ferrovia que penetrava o Norte do Paraná tinha um papel fundamental, pois já começava a apontar diretamente para a fronteira oeste do Brasil e para o Oceano Pacífico, do outro lado do continente.

Dr. Cunha - dentista, fabricante de sorvetes
e músico amador que tinha um terno só

Frequentavam o consultório do Dr. Cunha, dentista, que, quase certamente era da mesma família do professor da escola e talvez nem fosse formado. O homem tratava cáries e dores de dente, mas a clientela era pequena, então ele procurava aumentar sua renda fabricando sorvete e guaraná. As grandes barras de gelo seco para o fabrico do sorvete vinham de Ourinhos, a 50 km de distância, em caminhões, fechadas em caixas de madeira com pó de serra socado misturado com sal para manter a temperatura. As barras eram picadas e colocadas nas batedeiras de madeira movimentadas à mão. Quando iam ao consultório para tratar dos dentes, Os filhos de Cândido (Candinho lembra-se muito bem disso) ajudavam o Dr. Cunha a mover as batedeiras de sorvete. Também produzia guaraná, o Dr. Cunha. Após fazer toda a composição do refrigerante – o xarope doce, a água e mais um ou dois segredinhos – e engarrafá-lo, um momento antes de colocar a chapinha guarnecida de uma fina lâmina de cortiça na boca da garrafa, o fabricante enfiava por ali um bico de gás que espalhava bolhas naquele líquido e depois tampava imediatamente para que o gás não escapasse.

Por ali todo mundo sabia que quem toca violão é sempre um pouco malandro, quando não desocupado. Não era bem o caso do dentista Cunha, que era trabalhador mas tinha só um terno além da roupa de trabalho, tocava violão, e cantava nas varandas em noites frescas. Cantava bem o danado, era bom de prosa e ninguém podia encontrar um isso que fosse que o desabonasse, a não ser o fato de ele não ter dinheiro, como, aliás, todo mundo por ali. Cantando e tocando a viola ele amealhava amizades e arrancava suspiros das mocinhas. À noite, depois das sessões de viola e cantoria, ele entrava em sua casa, lavava cuidadosamente o terno e deixava-o secando até depois da lida do dia seguinte, quando então o passava bem passado, os bolsos pelo avesso e todos os vincos nos lugares certos, vestia-o, pegava, orgulhoso, seu instrumento e saia para mais uma noitada na varanda, cantando Catulo da Paixão Cearense e outras modas da moda.

No carnaval de 1926, enquanto as pessoas saiam fantasiadas na rua em grupos, cantando marchinhas e levando água, farinha, e outras coisas grudentas e/ou malcheirosas para guerrear, o violeiro saiu todo orgulhoso e altivo com sua fatiota, e, antes de caminhar 200 metros, foi emboscado por um grupo de rapazes que o encharcaram de água, jogaram farinha, quebraram ovos e esmagaram tomates podres na sua roupa. De nada valeram os protestos e pedidos do pobre rapaz, e aquela noite de carnaval terminou, para ele, antes de começar. Profundamente atingido em sua vaidade e orgulho pela lambança, ele voltou para casa melecado e indignado até a alma. Tirou o terno, encheu a tina de água e começou a lavar...

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Mais pilulas

Mudança

Por aqueles dias a família se mudou da serraria para uma casa melhor, de alvenaria e piso de assoalho, no centro da cidade, na esquina da praça da cadeia. Cândido, agora que não podia mais contar com o Véio Dito, tinha vendido sua parte da sociedade ao Sr. Fernandes, liquidado sua participação na serraria e estava começando com um negócio de secos e molhados, mais uma oficina de carpintaria num puxado de tábuas ao lado da casa. Foi nessa época que Candinho foi à escola pela primeira vez:

Candinho na Escola

Ele ia e voltava por aquelas ruas de terra, pisando o solo arenoso do lugar e chutando as pedrinhas do caminho com suas alpargatas fanabor de lona impermeável e sola de corda. A primeira coisa que ele aprendeu é que o objetivo da escola era passar o livro, ou seja, começar a estudar desde o começo, passando pelo meio e até o fim, de acordo com o que estava proposto na cartilha. No começo ele não entendeu muito bem o que queria dizer aquilo, mas depois achou que entendeu, e teve uma ideia brilhante para chegar ao fim do livro mais rapidamente diminuindo o tamanho dele. Quando voltava para casa, abriu seu livro e começou a arrancar as páginas, do fim para o começo, para passá-lo mais rápido e assim precisar ficar menos tempo na escola... Chegando em casa, todo orgulhoso de sua boa ideia, contou-a inocentemente ao pai que ficou muito, mas muito bravo mesmo, e achou por bem ensinar umas noçõezinhas básicas de certo e errado para aquele guri do jeito que sempre fazia, sem bater nem castigar fisicamente, mas aplicando uma punição moral, como ele sabia fazer muito bem, que deixava o punido incomodado e pensando no assunto por bastante tempo.

O professor com quem o menino estudava na escola chamava-se Cunha e era muito severo, chegava a ser assustador. Nunca aconteceu com Candinho, mas ele se lembra muito bem de como eram resolvidas questões disciplinares em sala de aula, particularmente com os alunos mais velhos, em sala de aula. Ele usava a palmatória, que é um instrumento como uma colher de pau plana ou um pequeno remo com a qual se aplicavam os bolos, batidas fortes nas palmas das mãos dos alunos.

O professor chamava o indisciplinado a um canto e, sob as vistas de todos os demais segurava o pulso do aluno com a mão aberta e castigava de acordo com uma classificação da indisciplina; de 1 a 12 bolos e palmatória, de acordo com a gravidade do ato: colocar carrapicho no assento do colega da frente, cuspir, escarrar, brigar, fazer bagunça durante a aula, jogar papel no outro, xingar ou ameaçar o professor. Era brutal, e Cunha parecia bater com gosto. O garoto saía chorando e muitas vezes retornava no dia seguinte com a mão inchada e a cara de quem estava passando dor. Assim muitos talvez nem tenham chegado a aprender a escrever direito o próprio nome.

A revolução dos tenentes

A cinco de Julho de 1924, segundo aniversário do levante ocorrido na Capital Federal, na época o Rio de Janeiro, que ficou conhecido como “Os 18 do Forte”, eclodiu a revolta tenentista no vizinho estado de São Paulo, liderada por Isidoro Dias Lopes. Da varanda da casa onde então a família morava, bem diante da Praça da Cadeia, Candinho observou várias vezes tropas de revolucionários que passavam por ali. Havia um aquartelamento perto de Santo Antonio da Platina, e a movimentação era grande. Às vezes eles estavam bem compostos e descansados, outras, iam e vinham sujos, exaustos e mortos de fome, uns a cavalo, outros a pé, uniformes desgrenhados, as polainas de couro duro protegendo-lhes as canelas, armados com revólveres de tambor e espingardas. Isso durou pouco tempo e quase não afetou a vida da cidade. Se houve combates na região, Candinho não sabe dizer. E, tão rápida e inesperadamente como vieram, as tropas se foram, seguindo adiante para o Rio Grande do Sul, para formarem, junto aos tenentes gaúchos liderados por Luis Carlos Prestes (cognominado O Cavaleiro da Esperança), a Coluna Prestes, que marcharia pelo país até 1927 numa tentativa quixotesca de fazer a revolução comunista no Brasil.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

historinhas em pílulas

Depois da viagem e do longo parênteses aberto com ela neste blog, voltemos a Santo Antonio da Platina nos anos de 1920, quando Candinho era uma criança de menos de 10 anos.

A festa do Padroeiro e a fogueira acesa com lagarto

O padroeiro da cidade era, como se poderia esperar, Santo Antonio, e a festa mais aguardada do calendário local era, justamente, a celebração do dia do Santo, que acontecia na praça principal, diante da Igreja Matriz: barraquinhas de jogos, comidas e prendas, a banda Lyra Platinense, que sempre tocava nessas ocasiões, devidamente posicionada no coreto que ficava no centro da praça. De noitinha juntava-se uma pequena multidão a espera da fogueira ser acesa com um espetáculo de fogos de artifício, o que era o ponto alto da festa. A lenha era empilhada, tronco sobre tronco, até uma altura de 8 a 10 metros e, entre essas madeiras grossas e no miolo da fogueira, eram colocados pedaços de madeira mais finos – gravetos, cepilhos, cavacos e palha de milho, e o grande momento era quando a pirâmide ia ser acesa, o que marcava também o início das festividades. O fogueteiro oficial esticava um arame desde o centro da pilha até uma esquina mais abaixo, a 70 ou 80 metros de distância, e sobre esse varal era colocado o chamado lagarto, um foguete incendiário feito com pólvora que corria por ele. No momento certo, o fogueteiro acendia o pavio do lagarto e este corria rapidamente sobre o arame desde a esquina até o centro da pilha, onde então explodia e dava a partida no espetáculo de fogos. Os gravetos, cepilhos, palhas e cavacos então se acendiam, fazendo arder os troncos maiores, até tocar fogo em toda a enorme pira, sob os aplausos entusiasmados dos assistentes. Enquanto isso se dava, A Lyra Platinense, devidamente posicionada no coreto a uma distância segura, atacava um dobrado ou uma marcha. E a festa então começava oficialmente.

Eletricidade

Cândido e Fernandes tinham adaptado um dínamo ao vapor da serraria e, desde esse dínamo, esticaram alguns fios pela cidade, sobre postes que eles mesmos produziram. Instalaram bocais com lâmpadas e interruptores em algumas casas e logradouros públicos que acendiam no fim da tarde e ficavam acesas até lá pelas 22h... Mas a luminosidade das lâmpadas incandescentes era muito fraca, irregular e instável, e a experiência não durou muito tempo. Ao que saiba Candinho, a história nunca registrou o fato de que os primeiros a levarem a energia elétrica para a cidadezinha, nos idos de 1924, foram os sócios da serraria. Por esses dias, o prefeito e grande líder político local era o Coronel Capucho.

Daniel aproveitou a energia elétrica para inventar uma brincadeira engenhosa: Cândido já estava se desligando da serraria e montando sua casa comercial no centrinho da cidade, a uma quadra da Praça da Matriz, e tinha puxado a eletricidade até lá e instalado uma tomada na parede. Daniel então ligou um fio bem fininho nas duas saídas da tomada, passou esse fio pelo canto do balcão e fixou a outra ponta numa perfuração feita numa moeda que foi depois mergulhada numa bacia com água. No período em que o dínamo ficava ligado não parava de passar uma leve corrente por aquele fio. A quem entrava no armazém, Daniel desafiava:

- Se você conseguir pegar a moeda de dentro da bacia, ela é sua.

Quem encostava a mão na água, tomava um choque leve. Gente que nunca tinha sabido na vida que a energia elétrica existia, tomava contato com ela de modo a nunca mais esquecer disso. Vários iam mais de uma vez desafiar a eletricidade, achando que podiam vencê-la pela velocidade ou pela esperteza, e o máximo que conseguiam era derramar água da bacia com o solavanco do choque.

domingo, 31 de julho de 2011

Santo Antonio da Platina - parte 2

Esta última postagem do diário de viagem está sendo quase um parto. O que está sendo contado aqui foi uma das maiores experiências da minha vida, e uma coisa assim não pode ser abordada de qualquer jeito. Como já ficou muito claro para mim - e já foi dito e repetido em postagens anteriores, a linguagem que domino não é competente para dar conta da experiência existencial. Por mais precisa e profunda que possa ser minha escrita e a descrição/narração das coisas ocorridas, já sei de antemão que não ficarei completamente satisfeito com o resultado. Ainda que eu esteja escrevendo isto principalmente para me referenciar e localizar, é óbvio que, se estou publicando numa mídia supostamente acessível ao mundo inteiro, é porque quero leitores - de preferência que se sintam tocados pelo que estiver escrito. Aqui chegamos a um ponto em que a viagem está terminando e as pontas - até agora soltas - se juntam. Mas não existe nenhum efeito especial, um clímax ou conclusão, e a história pode ficar até sem graça...

Feita a ressalva, declaradas as intenções e delimitado o problema, joga-se tudo pro espaço e seja o que Deus (ou a fortuna) quiser. Retornemos para a tarde de 16 de junho de 2011 em Santo Antonio da Platina, Norte Pioneiro do Paraná...

Maria Tereza (Titita) e Cícero Ferreira Dias, padrinho de Crisma do Candinho

Dona Marta Dal Bianco (filha do Cícero Ferreira Dias) e Candinho

Depois do encontro com a Bia, fizemos mais algumas fotos e anotações, fomos para o hotel, descarregamos as bagagens, descansamos alguns minutos e aí já era quase a hora marcada para a visita a Dona Marta, comadre de Candinho. Fomos muito bem recebidos, mas ficou óbvio que a senhora foi pega de surpresa e até ficou um pouco sem jeito. Foi tudo um pouco formal, mas muito suave e agradável. Dirceu, discreto como sempre, ficou nos esperando no carro. Fotos, anotações, lembranças dos velhos tempos. Candinho pediu uma imagem dos pais dela, padrinhos de crisma dele nos idos da década de 1930, que chegaria dias depois, pela internet. Paramos numa pastelaria para o lanche e fomos para o hotel. O velhinho devidamente instalado, a TV ligada, meu banho tomado, toca o celular: Bia e Pitt estavam vindo me pegar para darmos um passeio.


Alguns lugares em torno do perímetro da cidade, lendas urbanas de Santo Antonio da Platina (cidades pequenas também tem disso), frango à passarinho, cerveja, fotos antigas, a localização aproximada da serraria em que meu avô Cândido era sócio do Fernandes nos anos de 1920... Uma conversa rápida pra podermos dar conta, se não de tudo, de todo o possível. O senhorzinho de 93 anos no quarto do hotel, este que vos escreve passando um pouco da metade desse caminho e meus amigos trinta anos mais novos que eu – uma escadinha de gerações... Essa noitada rendeu ou renderá frutos importantes para a conclusão do trabalho sobre a história da família antes da fatídica noite em que Valdemar tombou no Lageado, e certamente para todo o resto da minha vida. Vivemos algumas horas de intermitência entre uma lucidez responsável e uma loucura adolescente. De retorno ao hotel, Candinho estava acordado, me esperando preocupado. Então aconteceu uma coisa que eu ainda não posso contar aqui porque pactuamos segredo, eu e meu pai, pelo menos enquanto está recente e possa haver um envolvimento emocional – mas posso dizer que foi o fecho dramático de toda a aventura do pai e do filho de retorno às origens, uma cena que, no momento certo, fará parte dos clássicos de minhas memórias. Sobre o fato só posso dizer que foi profundo e revelador; que saímos dessa, Candinho e eu, fortes, cúmplices e amigos como nunca antes nas nossas vidas.

Bia, eu, Pitt. O frango à passarinho está fora da cena, mas está na mesa.


Recortes da paisagem da terra dos ancestrais

Dia seguinte, 10 e alguma coisa da manhã: hotel acertado, minha passagem para Londrina comprada, Dirceu e Candinho na estrada, rumo a Curitiba. Tenho até as 13 horas. Me encontrei com Bia no centro da cidade (Pitt estava trabalhando: ele é jornalista de um diário de circulação regional) e saímos em mais um passeio por pontos da cidade. Fomos até a antiga estação Platina, que aparece em mais de um trecho das narrativas de Candinho; ali ao lado as antigas casas dos ferroviários, hoje ocupadas por ciganos (melhor não ficar muito tempo – sabe-se que existe certa tensão entre os ocupantes e as pessoas da cidade). Depois, por outro caminho, os campos e colinas em volta do perímetro urbano: o fato de ser véspera de meu aniversário, de ter passado os últimos dias numa relação intensa com meu pai; aquela menina linda e gente boa ali, passeando comigo no meio da amplidão daquela paisagem, somados ao cansaço físico da correria dos dias anteriores, à minha excitação intelectual e a uma predisposição para uma espécie de devaneio místico, me deixaram num estado de espírito muito peculiar. Fomos até um lugar onde existe um túnel ferroviário construído nos anos 20, mesma época em que Candinho, criança, viveu por ali e seu irmão mais velho, Daniel, trabalhou no entreposto da Railway, ao lado da estação hoje ocupada...

O lugar é lindo e o dia era um daqueles raros em que tudo – da qualidade do ar até a temperatura e a luz – estava na medida certa... Voltamos até a cidade, almoçamos, me levaram até a rodoviária, peguei meu ônibus e retornei a Londrina...

Não há mais muito que dizer, o que não significa que tudo o que aconteceu simplesmente acabou e não voltará mais. Na verdade ali começou uma coisa que mal e mal se delineou e cujos efeitos ainda se farão sentir por muito tempo, creio que por todo o resto da minha vida. Ali foi, ao mesmo tempo, um ponto de chegada e um novo ponto de partida...

...como se pode ver, não existe um momento culminante nesta história. E também não há mais nada que eu consiga, neste momento, dizer a respeito. O diário de viagem aqui chega a um ponto final e minha própria história, por mais que já esteja no meio do caminho, ainda está só começando. Vamos em frente: cada momento é o primeiro do primeiro dia do resto da vida de cada um, mas há momentos que brilham mais do que outros, como se fossem faróis, e eu simplesmente não sei porque isso acontece. Talvez não seja importante obter respostas, mas sim formular as perguntas do jeito certo...