quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O lugar


A estrada que vinha desde Santo Antonio da Platina terminava na rua principal do Lageado, onde havia aí umas 50 casas de chão batido que ficavam dos dois lados dessa rua e, entre as casas, a espaços irregulares, abriam-se pequenas transversais que iam dar em picadas no meio do mato ou nas roças onde o povo dali trabalhava. Mais além, quase à beira do ribeirão, erguia-se a igrejinha de ripas de palmito coberta com tabuinhas, bem perto de uma mina de águas muito límpidas e cristalinas que abastecia a maior parte da população do lugarejo. Não era sempre que aparecia um padre para rezar a missa aos domingos – só uma vez ou outra, quando vinha um de Santo Antonio da Platina, quase sempre em ocasiões festivas. Então os católicos dali, tementes a Deus e cuidadosos de suas almas, reuniam-se na capelinha durante a semana para rezar o terço. E ainda em todas as ocasiões que a comunidade tinha que se reunir para decidir qualquer coisa, era lá que acontecia. Mas não demorou muito para o lugar ser elevado a paróquia e chegar um padre morador para colocar as coisas nos eixos.

Depois do Inverno...


Agora, já que acabou o Inverno, voltemos ao que viemos de fato fazer aqui. As primeira ações da Primavera serão a postagem de um trecho que conta a mudança da família de Santo Antônio da Platina para o Patrimônio do Lageado, alguns episódios acontecidos no patrimônio durante os dez anos que a família ficou por lá e o tema principal do TCC, que se refere à morte de Valdemar. Parte deste material já foi publicado em outras postagens, mas é aqui que começamos a localizar os eventos que resultaram na morte de Valdemar. Um pouco de narrativa agora e daqui a pouco voltamos ao trabalho acadêmico...

Mudança para o Lageado

Santo Antonio da Platina era praticamente uma comunidade rural. Todos dependiam, direta ou indiretamente, do trabalho no campo. Produzia-se milho e algodão, feijão e café, criavam-se porcos e galinhas. Cândido, após ter ele próprio trabalhado na roça, ganhando seu sustento e o da sua família como agricultor; tocado a serraria e depois uma carpintaria, estava agora com um pequeno comércio, um armazém de secos e molhados que fornecia mantimentos, ferramentas, tecidos e miudezas, negociando, como se fazia naquela época, na honradez do fio de bigode e nos valores anotados em caderneta, pagos sem juros em 30, 60 ou 90 dias, ou quando os produtos da terra eram comercializados.
Aquele ano de 1928 foi especialmente difícil. No ano anterior uma série de condições desfavoráveis havia comprometido os resultados do trabalho do campo e todos estavam sem dinheiro para acertar suas contas: os porcos foram acometidos de peste e centenas deles tiveram que ser sacrificados; choveu torrencialmente no último período de colheita de algodão e quase toda a safra se perdeu; as espigas de milho não granaram direito e deram uns grãozinhos minúsculos e duros como pedra que até as galinhas rejeitavam, ou então mofaram e apodreceram fechadas nas palhas. E, como se não fosse suficiente, bastaram alguns dias de sol depois da chuvarada e a cidade foi invadida por milhões de mosquitos, que saiam a devorar as pessoas todos os fins de tarde. A cidade amanheceu com malária. Dezenas de homens fortes não puderam se levantar de suas camas e ali ficaram dias, batendo os dentes com a febre terçã (Candinho sabe, mais ou menos, de cinco ou seis mortes pela febre entre bebês e pessoas muito velhas e já doentes). O trabalho nos campos quase parou. A sobrevivência começou a ficar muito difícil naquela situação e o fantasma da fome começou a assombrar aquela gente. Parecia praga bíblica.
A venda de Cândido chegou à beira da falência e alguma coisa precisava ser feita a respeito. Não muito longe dali estava sendo implantado o patrimônio do Lageado, que depois seria Carvalhópolis e, depois ainda, município de Abatiá. O chefe da família tinha ouvido falar bem do lugar. Dizia-se que, ali, a doença dos porcos não havia chegado e os produtos da terra tinham dado bem naquela safra. Várias pessoas e famílias mineiras da região de Ubá que eram suas conhecidas estavam indo para lá. Viajou até o patrimônio e fechou negócio numa grande casa de madeira que tinha um salão de frente onde daria para acomodar muito bem o negócio de secos e molhados, e alguns aposentos de fundos onde poderia instalar toda a família. Ficou decidido que eles mudariam para o Lageado.

Foram necessários vários dias, três carros de bois e cinco carretas de burros para acomodar tudo, a mudança da família e o estoque do armazém. Foi construído um pequeno engradado de madeira para acomodar a gatinha vira-lata que dormia na despensa e servia de mascote para as crianças e, numa manhã mal começada, logo aos primeiros raios de sol, Cândido vistoriou os volumes, ajeitou uma coisa aqui, outra ali, conferiu as amarras das cargas e se o pessoal estava bem instalado, tomou assento ao lado do condutor do primeiro carro e deu a ordem de partida.
Era uma viagem de pouco mais ou menos que 30 quilômetros até a margem do ribeirão Lageado. Fariam uma rápida passagem no bairro de Santa Joana, onde pegariam mais um volume na casa de parentes, a meio caminho do rio das Cinzas, primeira etapa da viagem. A comunidade do Lageado ficava do outro lado do rio que tinha que ser transposto através de uma balsa movida a tração humana num trecho de uns 80 a 100 metros de largura. Chegaram à margem no meio da tarde do primeiro dia, e então começou a complexa operação de travessia: de um em um ou dois em dois, de acordo com suas cargas e para manter o equilíbrio na embarcação tosca, eram embarcados os carros ou carretas com seus respectivos carreiros e um ou dois membros da família, mais os balseiros de braços fortes que puxavam os cabos de aço esticados como varais entre uma e a outra margem do rio e que corriam por roldanas.
Quando chegaram, tudo e todos, enfim, do outro lado, já era noite. Restava fazer alguma coisa ligeira para comer e bivaquear até a madrugada seguinte, para saírem antes do sol nascer.
Foram dois dias de jornada dessa caravana desde Santo Antônio até o Lageado, e eles chegaram no entardecer do segundo dia de viagem. Nem bem pararam os carros, Cândido abriu as portas de seu novo armazém e casa, improvisou um balcão com caixotes e expôs a mercadoria que tinha trazido: tecidos e sal; pó de café e ferragens; calçados e querosene; farinha e agulhas; charque e açúcar; feijão e toucinho; macarrão e lamparinas. A gata foi libertada de seu engradadinho de madeira, estudou um pouco as redondezas e não encontrou sua casa por ali, então sumiu pelo mundo. Passaram a maior parte da noite ajeitando as coisas, ocupando os espaços vazios, limpando, entrando na função madrugada adentro. Certa hora Candinho não viu mais nada porque desabou e foi colocado para dormir numa das camas que Etelvina e Aurora já tinham preparado. Acordou dia claro, com o armazém já em pleno funcionamento. Candinho e Ides saíram para explorar o lugar; foram até a beira do ribeirão, a igrejinha de palmito, encontraram outros garotos, conversaram, se conheceram e perguntaram pela gata. Ninguém a tinha visto.
O patrão abriu cedo seu comércio naquele dia de inauguração, os negócios correram muito bem e ele ficou entusiasmado. Já no primeiro dia Candinho fez alguns pequenos trabalhos no armazém, levando e trazendo uma coisa ou outra de lá para cá e daqui para lá, mas só assumiu a responsabilidade por tarefas mesmo lá pelo terceiro ou quarto dia, quando as condições e caminhos do local passaram a ser melhor conhecidos.
Lá pela metade da segunda semana após a chegada ao Lageado, Candinho e Daniel, o mais novo e o mais velho dos filhos homens, foram a cavalo até Santo Antônio da Platina para encerrar uma coisa ou outra. Foram primeiro direto para a casa de uma tia, onde encontraram a gatinha (ou a gatinha os encontrou), que havia chegado ali de volta mais ou menos uma semana depois da mudança, miando de dar dó, desesperada de fome, ferida e cansada da longa, arriscada e solitária aventura por aqueles ermos selvagens e cheios de perigos. Quantas lutas não teria aquele bichinho enfrentado? Quando a gatinha viu os meninos esfregou-se nas pernas deles e deu grandes mostras de reconhecimento, mas eles nem pensaram em levá-la de volta para o Lageado. Ali ela ficaria, como recompensa por sua esperteza, tenacidade e bravura, senhora do território que conhecia tão bem e para onde tinha conseguido voltar enfrentando um trecho tão perigoso e difícil. Como teria ela atravessado o rio caudaloso na volta?  Nunca mais ninguém tentou tirá-la de casa e ela morreu de velha vários anos depois.