quarta-feira, 30 de junho de 2010

As fotos do Lageado

Da esquerda pra direita os personagens são: Luciano, um chacareiro no Lageado, meu tio Valdemar, meu tio Edward, Nhô Candido Bonifácio de Souza, mais conhecido como Candido Coelho

quarta-feira, 16 de junho de 2010

trechos

Segundo Candinho, entre o final do ano de 1927 e o início de 1928 ocorreu um grande revés nas expectativas de produção de Santo Antonio da Platina. Além de uma praga que acometeu os porcos, fazendo com que centenas deles tivessem que ser sacrificados, um período de intensas chuvas acabou com as safras de milho e de algodão e, num curto espaço de tempo após o término do aguaceiro, houve um aumento significativo na quantidade de casos de malária na cidade. O lugar era pequeno e dependia basicamente da agricultura de subsistência, da pequena criação e do pequeno comércio, e isso teria ocasionado uma grande crise – grande até que ponto é difícil saber, mas grande o bastante para afetar profundamente a vida de Candido e de sua família, e para parecer a Candinho, com menos de 10 anos, o equivalente a uma praga bíblica.

[...] A venda de Candido chegou à beira da falência e alguma coisa precisava ser feita a respeito. Não muito longe dali estava sendo implantado o patrimônio do Lageado, que depois seria Carvalhópolis e, depois ainda, município de Abatiá. O chefe da família tinha ouvido falar bem do lugar. Dizia-se que, ali, a doença dos porcos não havia chegado e os produtos da terra tinham dado bem naquela safra. Várias pessoas e famílias mineiras da região de Ubá que eram suas conhecidas estavam indo para lá. Viajou até o patrimônio e fechou negócio numa grande casa de madeira que tinha um salão de frente onde daria para acomodar muito bem o negócio de secos e molhados, e alguns aposentos de fundos onde poderia instalar toda a família. Ficou decidido que eles mudariam para o Lageado. [...]

[...] Na história oficial de Abatiá, disponível na internet, consta que: “Em 1925, um grupo de pioneiros, formado por Antonio Maria, João Carvalho, Candido Coelho, José Vicente Ramalheiro e Manoel José Pereira e suas famílias, estabeleceu-se no lugar conhecido pelo nome de Lageado nas margens do Rio Laranjinhas, criando um Patrimônio que deu origem ao atual Município de Abatiá.
Nos primeiros tempos, a localidade era conhecida pela denominação de Lageado, passando, mais tarde, a denominar-se Carvalhópolis, em homenagem a João Carvalho, um de seus fundadores.
A cultura do café constituiu, sempre, mais importante fonte de riqueza do município.”

Candinho conta que o citado Candido Coelho era, na verdade, seu pai, chamado assim por conta do sobrenome do pai dele que lhe servia de referência entre os colonos desde o bairro do Ubá, ou desde antes mesmo, em Minas Gerais, até o Lageado (mas isto já foi dito antes). Que João Carvalho era o pai do Elias Carvalho que, anos depois, viria a ser um dos assassinos de seu irmão Valdemar. Que, sim, os outros já estavam por ali antes, mas Candido e sua família se mudaram mesmo em 1928 – e corrige ainda que o lugar ficava às margens do ribeirão Lageado, entre os rios Laranjinhas e das Cinzas, e que o ribeirão talvez fosse (ele não tem certeza) um afluente do Laranjinhas. [...]

notas

Considerando que esta é a terceira postagem do blog e o primeiro texto a ser escrito especialmente para ele enquanto tudo ainda é apenas um rascunho, vamos começar a situar os objetivos desta empreitada. Como surgiu a ideia de coletar e organizar as memórias de meu pai já foi contado numa postagem anterior. Obviamente, o primeiro objetivo era escrever e publicar um livro, assim uma biografia romanceada como tantas outras que existem por aí. Nesses 10 anos muita coisa aconteceu – inclusive, depois de chegada à idade dos enta, achei por bem fazer um curso superior, e esta foi uma das decisões mais acertadas de minha vida. Entrei para a faculdade de História da Universidade Estadual de Londrina no ano de 2004 e fiz, até agora, um curso bem aproveitado, mas cheio de acidentes que não vem ao caso comentar aqui.
Juntando o fato de que a composição do livro se mostrou muito mais complexa do que eu poderia imaginar a princípio, mais as dificuldades associadas à publicação e distribuição, principalmente para quem não está já há tempos no mercado editorial, mais a perda e o consequente trabalho de resgate do material que teve que ser feito quando, meses atrás, a máquina deu pau – e ainda considerando a idade avançada de meu pai, que completou 92 neste ano, resolvi – com a imediata adesão de meu orientador do TCC, o professor Rogério Ivano (valeu, Rogério!), deslocar o tema de meu trabalho em alguns séculos e milhares de quilômetros – dos primórdios do Renascimento para os anos 20 e 30 do século XX, e do célebre desenho do Homem Vitruviano do mestre Leonardo da Vinci, executado na Florença de 1490, para uma morte obscura, acontecida por um motivo mais obscuro ainda, no lugar conhecido como Lageado, distrito de Santo Antonio da Platina, em 22 de maio de 1937.
A dupla função deste blog consiste, primeiro, em estabelecer um laboratório ou base de operações a partir da qual montar o TCC, e esta é uma tarefa pontual que tem um prazo estabelecido (final de 2011). Segundo, construir uma alternativa e uma vitrine que permita a visualização um trabalho que já está sendo realizado há uma década (o livro de memórias do qual meu pai é protagonista). São dois objetivos diferentes, que se referem ao mesmo material e se cruzam em vários momentos. O trabalho de história começa com a problemática da memória biográfica, do testemunho e da história oral, dos pontos de vista tanto historiográfico quanto cognitivo e psicológico; trabalha com os processos e tipos de personagens envolvidos nos eventos do recorte temporal e espacial (Santo Antonio da Platina e Lageado, anos 1920/30) tendo como primeiro ponto de referência as narrativas – ou os testemunhos – de meu pai, Candinho, interpretada(o)s e colocada(o)s em linguagem literária por mim. O que acrescenta um problema, que é o de meu envolvimento pessoal com a fonte primeira da pesquisa, embora isto não seja de todo relevante para a construção do trabalho de história, pois as reconstruções de eventos e fatos principalmente situarão acontecimentos fora de toda discussão: Valdemar morreu, baleado, na noite da data já citada, numa emboscada (ou talvez num entrevero) testemunhada por Candinho, que sobreviveu para recontar setenta anos depois, - e o fato de que isso aconteceu devido a uma rixa entre meu avô, Candido, que foi subdelegado do Distrito do Lageado no início da década de 1930 e o Osório Silva, delegado regional de Santo Antonio da Platina. Isto não se discute. Discutíveis são as razões e eventos que levaram a isso e a totalidade da versão contada pela boca de meu pai e narrada através do texto construído por mim.
Como este blog é uma “obra aberta”, estamos em construção. Entre as próximas postagens estará a estrutura ou projeto do trabalho acadêmico. Por enquanto o assunto está apenas sendo introduzido e os elementos localizados. Disponho de algumas referências sobre a memória e sobre o recorte geográfico/temporal que está sendo abordado, mas ainda é pouco. Não só aceito, como na verdade fico muito grato por sugestões que vierem dos prováveis leitores.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

origens

Candido Batista de Souza, até hoje chamado de Candinho, nasceu na manhãzinha do dia 7 de Maio de 1918, poucos meses antes do final da I Guerra Mundial. O lugar era um bairro rural de Santo Antonio da Platina chamado de Ubá, formado por imigrantes oriundos do estado de Minas Gerais, da região da cidade de mesmo nome. Candinho é o caçula de cinco irmãos sobreviventes (pela ordem: Aurora, a primogênita, Daniel, Valdemar, Edward – Edevarde ou Ides – e Candinho), filhos de Candido Bonifácio de Souza e Etelvina Batista de Souza. Ainda fazia parte da família o Véio Dito, um ex-escravo que, pelo que se pode deduzir, não viu nenhuma diferença entre as condições de antes e depois da Lei Áurea e continuou com a família com a qual sua própria família já convivia havia muitas gerações. Candido e Etelvina ainda tiveram outros filhos: pelo menos dois meninos entre Edward e Candinho e uma menina quando Candinho contava com, aproximadamente, dois anos – a pequena Eurodites, que não viveu mais que algumas semanas, sendo enterrada pelo Véio Dito num canto distante da propriedade que possuíam no Ubá.
No sítio eles plantavam cana, criavam porcos, galinhas e uns bois de tiro que serviam, principalmente, para transportar a cana cortada desde o canavial até o engenho vertical – tracionado pelos mesmos bois – que espremia a garapa em cochos de madeira que eram então levados ao barracão anexo e derramados em grandes tachos de cobre ajeitados sobre fogueiras alimentadas a muita lenha seca, e ficava horas apurando até virar rapadura, o principal produto do sítio, que saía dali em tijolos de até 1 kg de peso embrulhados dois a dois em palhas de milho e empilhados sobre os carros de boi até as cidades de Jacarezinho e Santo Antonio da Platina, onde era então comercializada.
Um dia, em 1923, quando Candinho estava com 5 anos, o sítio do Ubá foi vendido e eles se mudaram para Santo Antonio da Platina, onde o patriarca Candido tinha entrado com algum dinheiro, mais os bois de tiro e seu espírito empreendedor, como sócio numa serraria com um tal Sr. Fernandes (de quem Candinho não sabe mais nada), que havia investido a maior parte do capital enquanto Candido ficava encarregado do trabalho de localizar as árvores no meio da mata, providenciar para que fossem derrubadas, serradas no local em pedaços de tamanho adequado para o transporte, embarcadas nas carretas e transportadas até a serraria, onde a madeira era desdobrada em tábuas e outras peças – dependendo da qualidade da madeira e o fim para o qual se destinavam – que seriam, posteriormente, utilizadas nas construções da região. Para realizar esse trabalho Candido contava com o Véio Dito, seus carros e suas juntas de bois e com alguns homens contratados, fortes e hábeis no uso de machados e serras.
Foram morar num anexo da própria serraria adaptado para servir como casa da família. A sociedade se fez, principalmente, para que fosse comprado e instalado na serraria, um enorme vapor de muitas toneladas que movimentaria todo o complexo a partir de então. Foi enquanto moravam ali que Candinho foi à escola pela primeira vez na vida, e onde o Véio Dito, numa certa manhã de 1925 apenas não acordou mais. Foi por esses mesmos dias que, do vapor da serraria foi puxado, pela primeira vez na cidadezinha, um fio que acendeu algumas lâmpadas incandescentes em logradouros públicos e numas poucas residências, fato que, segundo Candinho, a história jamais registrou.
Em 1925 Candido vendeu sua parte no negócio ao seu sócio Fernandes e montou um pequeno armazém de secos, molhados, ferragens, tecidos, enlatados e quase tudo o que existia para ser comercializado naquelas época e região. Foi morar diante da praça que tinha a delegacia construída no meio, vizinho de cerca com o lendário (ao menos ali e naqueles dias) pistoleiro Diogo Apolinário Correia. Ficaram nessa casa, no centro de Santo Antonio da Platina, até que se mudaram para o Lageado, três anos depois. Ali conheceram o cinema mudo, onde o alfaiate da cidade tocava violino durante as exibições dos filmes, muitas vezes acompanhado por um clarinetista da banda Lyra Platinense; ali Candinho aprendeu o que é um eclipse quando, numa noite de lua cheia, os moradores locais saíram às ruas atirando para cima, estourando fogos e fazendo a maior barulheira para espantar o monstro que estava devorando o satélite; viu, em frente a sua casa, a movimentação de umas tropas de molambos que estavam engajadas na revolução dos tenentes e, na casa paroquial, a umas duas quadras de distância, quando o legista de Jacarezinho abriu o peito do sargento Jorge, morto na noite anterior e, depois de mexer um pouco dentro do tórax do defunto exibiu, para as dezenas de pessoas que se aglomeravam em torno da mesa, o coração do homem pendendo de seu dedo mindinho enfiado no buraco da bala certeira do assassino. Lá ele viu o primeiro automóvel de toda sua vida, e soube que a São Paulo/Paraná Railway havia chegado até bem perto, onde foi construída uma estação chamada Nova Platina, a partir de onde a ferrovia se bifurcava, lançando um ramal para o sul, até a região dos campos gerais, e outro ramal para oeste, entrando pelo norte do Paraná onde disseminaria cidades nos anos seguintes.
Em 1928 eles se mudaram para o Patrimônio do Lageado – depois município de Carvalhópolis e, depois ainda, Abatiá – pertencente a Santo Antonio da Platina, onde ficariam até agosto de 1937.

introdução

Era 1º de Janeiro de 2000. Depois do farto almoço, sorvete e cafezinho na casa de uma tia, irmã de minha mãe, nos sentamos na varanda, eu e meu pai, Candinho, e começamos a prosear. Ele já tinha 81 anos de idade, tinha vivido a maior parte do século XX, sofrido um AVC que tinha deixado todo mundo assustado alguns anos antes, e passado por duas cirurgias delicadas para desobstruir as artérias carótidas dos dois lados do pescoço – sem o que o risco de um novo derrame seria quase inevitável – e sobrevivido a tudo quase sem sequelas (parece que foi só depois disso tudo que ele começou a envelhecer de verdade). A conversa principiou sobre aquele ano cheio de zeros que estava então começando (era o primeiro do terceiro milênio ou o último do segundo?), sobre o ditado profético que era voz corrente nas antigas (a dois mil chegará, de dois mil não passará), como se imaginava que seria o mundo no novo século, no novo milênio que ia começar... Lá pelas tantas, Candinho começou a falar de sua infância no bairro do Ubá e em Santo Antonio da Platina, a adolescência e juventude no Patrimônio do Lageado, da morte de seu irmão Valdemar e da consequente mudança da família remanescente para Cornélio Procópio. Enquanto ele desfiava suas memórias, uma idéia que já existia como semente dentro de mim desde anos antes começou a tomar forma: eu iria escrever um livro contando a história de meu pai.
Começamos por aqueles dias mesmo e, de lá para cá, lá se vão 10 anos e alguns meses, mais de 20 horas de depoimentos gravados – parte em minicassete e parte em WAV – e pouco mais ou menos que 200 laudas de texto em diferentes graus de acabamento. Neste ano de 2010, quando Candinho completou 92 anos de idade deve ser a reta final do livro, pois meu pai que, de acordo com suas próprias palavras, já está no lucro, não vai rejuvenescer depois de nonagenário, e eu quero que ele veja, toque e leia a história de sua vida contada por seu filho do meio.

O texto que foi escrito até agora, com o objetivo de compor a biografia de meu pai, não se preocupou primordialmente com a exatidão histórica, mas sim com a manutenção do sabor e do colorido únicos de suas narrativas e casos. Mas não me dei uma liberdade total para escrever – ocasionalmente construí algum diálogo, uma descrição psicológica, juntei duas ou mais versões de alguns casos numa só, escolhi entre dois ou três nomes de personagens sobre os quais Candinho, tantas décadas depois, já não tem certeza absoluta, dramatizei uma ou outra passagem com vistas a um efeito literário, mas não “criei” coisa nenhuma, não retirei ou acrescentei nada que não fosse, no mínimo, plausível ou até mesmo provável – e o importante, no que diz respeito à construção de um trabalho de história, é que, no que se refere aos ciclos e fatos mais amplos onde a história de Candinho e sua família se inserem, não há nenhuma invenção em relação ao que a História conta, e tudo combina quase com exatidão. O estilo é apenas forma, licença literária, enfeite, carne – a espinha dorsal é a saga de meu pai e de sua família num período determinado, entre 1928, quando eles se mudaram de Santo Antonio da Platina para o Patrimônio do Lageado (depois município de Carvalhópolis e, depois ainda, Abatiá) e 1937 quando, após a morte de meu tio Valdemar, o que ainda havia restado da família mudou-se do Lageado para o distrito do km 125 da ferrovia que, ano seguinte seria elevado ao grau de município e batizado de Cornélio Procópio.
Este trabalho partirá de um ponto divisor de águas na história da família – a morte, numa emboscada descrita por Candinho, de meu tio Valdemar, no Patrimônio do Lageado, na noite de 22 de Maio de 1937. Sem colocar em dúvida a versão apresentada por meu pai, pode ser que as coisas não tenham acontecido exatamente da forma que ele as descreveu, até porque a memória de um indivíduo, por melhor que seja, é falha e traiçoeira, e pode acrescentar ou retirar dados relevantes a um determinado evento – mas isto não é significativo para o fim a que este trabalho se propõe, que é o de investigar as relações de poder que culminaram nos fatos ocorridos na data citada. Serão utilizados alguns trechos do livro em preparação, referenciados por estudos de diversas disciplinas das ciências humanas (história, geografia, sociologia) sobre a expansão cafeeira, a estrada de ferro SP/PR Railway, que estava entrando pelo norte do Paraná na mesma época abordada por este recorte, as alternativas econômicas que se apresentavam para os que não eram grandes produtores, as relações de poder e influência naquele meio rural que estava nos primórdios de sua urbanização.