quarta-feira, 30 de março de 2011

A lamparina

Etelvina tinha acabado de raspar o tacho e enformar a rapadura quente e ainda mole nas formas de madeira sobre o grande balcão, deu uma última vista d’olhos no interior do barracão, tirou o avental e pendurou-o num prego no mesmo pé direito onde a fraca lamparina a querosene estava pousada sobre um pequeno console de madeira. Esfregou as mãos e ajeitou o lenço na cabeça. Colocou sobre os ombros o casaco leve, pegou na lamparina e preparou-se para vencer os duzentos metros que separavam o engenho da casa. Estava exausta, enjoada do bafo quente e doce no meio do qual se movimentara nas últimas horas e um pouco mal-humorada. O canto do galo das quatro da manhã já havia soado há mais de meia hora, o que queria dizer pouco sono e mais lida logo mais. A madrugada era escura e fazia um friozinho. Enquanto caminhava, Etelvina ia se recordando vagamente de uma história que tinha ouvido duas noites antes a respeito de gente morta que voltava para atazanar os vivos. Não lembrava nem queria lembrar muito bem da história, porque àquela hora da madrugada, cansada e embotada como se sentia, sua mente estava se enchendo de pensamentos sombrios e ela já estava até ouvindo coisas, como um estalo muito suspeito atrás de si, no meio da treva. Por via das dúvidas apertou o passo e resolveu ganhar alguns metros passando pela cerca de arame que ela preferia não ter que atravessar a essa hora, mas que, na madrugada fechada, a lamparina mal e mal iluminando a si mesma, Etelvina, com todo o medo que estava sentindo, ia abrir uma exceção. Quase sem perceber estava andando muito depressa, quase correndo. Atrapalhou-se um pouquinho para passar pelo arame farpado – ficou presa por um segundo, mas como a lamparina estava cada vez mais fraca, ela mais assustada e seus sentidos mais e mais alvoroçados por estalos, farfalhos e bufos, ela forçou até se desenroscar, e, vendo-se livre, desatou a correr com alguma coisa pisando nos seus calcanhares, quase pegando a barra da sua saia. De repente a lamparina havia desaparecido de sua mão, ela não sabia como, nem pensava nisso. Corria agora como uma alucinada, e sabia que a coisa estava quase em cima dela, cada vez mais próxima, pegando sua saia pela barra...
Candinho, de cinco anos, acordou naquela madrugada com os gritos da mãe e a movimentação que passou como estrondo pela casa de madeira. Ela falava muito alto e rápido, e o homem da casa, sonado e nervoso, espingarda na mão, saiu a esquadrinhar a noite nas proximidades. Não encontrou nada, só ouviu os pássaros começando a despertar e viu uns raios de luz cor de sangue surgindo no horizonte – Ainda demoraria um pouco para o dia amanhecer.
Mal clareou, em plena hora da luz confusa, e Candido saiu a percorrer ao contrário o caminho que a esposa fizera de madrugada. Etelvina ficou em casa e até tentou descansar, mas estava muito excitada e com a cabeça cansada demais para conseguir relaxar. Minutos depois, Candido retornou com uma cara pensativa e encontrou-a sentada na cozinha diante de uma grande caneca de folha cheia de café com leite. Pediu a ela que se levantasse porque queria vê-la dar uma volta para confirmar uma suspeita, examinou-a rapidamente e apresentou a solução do caso: mostrou a ela um grande e caprichoso rasgo atrás em seu vestido, que não se fazia notar quando ela estava parada ou num movimento mais calmo, mas que, na corrida, desfraldava e ficava arrastando atrás dela uma faixa do tecido que se movia serpenteando, farfalhando e enroscando-se nos obstáculos do caminho, dando-lhe a sensação de que algo a perseguia rente aos seus calcanhares, quase a pegando (Candido encontrara uns fiapos presos numa das farpas da cerca de arame, bem no ponto onde Etelvina atravessara, e reconheceu neles o tecido do vestido da esposa). A mulher relaxou e conseguiu enfim descansar. Remendou o vestido para poder ainda usa-lo na lida e tudo o mais voltou ao normal. Permaneceu um pequeno mistério dessa história toda: a lamparina a querosene nunca mais apareceu.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Daniel e as mamangavas ou veneno e ciência

Começo da tarde; o ar estava quente e havia uma profusão de ruídos, zumbidos de insetos, latidos distantes, a voz de uma mulher entoando uma moda, o canto dos pássaros. Daniel andava pelo pasto à procura dos bois da junta que iria levar a carreta até o canavial, onde uma peonada tinha passado a manhã cortando e arrumando a cana que iria abastecer o engenho no trabalho que começaria no final da tarde e se estenderia madrugada adentro. Como sempre fazia, primeiro ele encontrava um dos animais e ia tocando-o pelo pasto, que era uma capoeira alta o bastante para ocultar até mesmo um boi. Os outros iam sendo reunidos até formar um único grupo que era levado até a mangueira onde seriam atrelados às cangas e postos para puxar a carreta. Nessa tarde Daniel estava tendo trabalho com um dos bois, que tinha se enfiado no meio de um emaranhado de galhos e cipós e estava se debatendo para escapar. Num movimento mais brusco, o animal enfiou o chifre numa casa de mamangavas que, assanhadas e furiosas, atacaram em enxame. Daniel saiu correndo e gritando feito louco, com a nuvem de insetos em torno dele, picando-o implacavelmente. Parou de gritar e começou a resfolegar. Os movimentos de sua corrida desenfreada foram ficando mais lentos e desarticulados, até que ele desabou no meio do pasto. Alguns vizinhos perceberam o sucedido, mas não puderam fazer nada porque o enxame que atacava Daniel não se dispersava. Correram então a chamar Candido, que chegou poucos minutos depois e viu o filho desacordado, inchado, lábios e pontas dos dedos roxos, respirando com dificuldade, cheio de calombos por todo corpo, no centro de cada calombo um ferrão adornado com as vísceras que as mamangavas deitavam fora quando picavam um bicho de sangue quente (a justiça da natureza: a mamangava envenena o bicho, mas perde a vida, desentranhada). Candido não pensou muito: pegou o menino nos braços e correu para casa com ele. Alguém veio com uma colcha limpa retirada do baú. Embrulharam Daniel e colocaram-no na garupa da sela de Candido, que firmou bem o moleque de encontro ao seu próprio corpo e espicaçou o cavalo, saindo em desabalada carreira para Jacarezinho. Lá chegando, procurou pelo Dr. Lessa, que o atendeu de imediato. Com sua pinça, o médico retirou do menino qualquer coisa como setenta e oito ferrões, e os foi colocando dentro de um frasco de vidro. Não havia muito que fazer num caso como esse, só limpar e tratar bem a vítima, colocá-la para descansar e esperar que a natureza fizesse sua parte. Daniel delirou e teve febre; sentiu muita dor quando começou a desinchar, e ficou com as vistas embaçadas e lacrimosas por um longo tempo depois, mas curou-se completamente e sem complicações.


Uma ocasião, mais de um mês após o ocorrido, quando Candido já via Daniel quase bom na lida e na vida, de passagem por Jacarezinho foi ter com o médico em seu consultório. Este o recebeu com muita cortesia, ofereceu-lhe assento numa cadeira diante de sua escrivaninha, abriu uma gaveta e retirou dela um frasco de vidro de boca grande com uma tampa de rosca onde estavam os ferrões. Mostrou-os a Candido e comentou:

- Sabe, seu Candido, as mamangavas injetaram muito veneno no seu menino, e talvez ele tenha se salvado exatamente por isso.

- Como assim, doutor?

- Também não entendo muito bem, mas acho que, passando da dose, o veneno se transformou em outra coisa dentro do corpo de Daniel, perdendo o efeito letal.

- Essa é nova! Veneno que desvira veneno! O que mais vai aparecer?

- A ciência ainda tem muita coisa para descobrir, seu Candido: o mundo é vasto e assombroso. Não tem limites!

- O senhor veja só... – disse Candido.

Agarraram na prosa durante o restante do tempo que durou a visita. Era uma tarde tranquila e o Dr. Lessa não tinha nenhum caso naquele dia. O médico era um homem letrado, que tinha lido muitos livros e recebia regularmente jornais e revistas de São Paulo. Conversaram sobre as ciências e atualidades: o automóvel, o avião, a máquina de escrever e a luz elétrica. Candido era um caboclo rude e de poucas letras, embora fosse curioso, inteligente, perspicaz e gostasse muito de aprender. Ao médico faltavam interlocutores interessantes naquela cidadezinha na fronteira do sertão, e era sempre um prazer quando aquele camarada sério, quase sisudo e de poucas palavras vinha ter com ele. Candido deu grandes mostras de gratidão ao médico pelo bom tratamento dispensado a Daniel, e este falou de muitas coisas interessantes que tinha lido nos livros e revistas que recebia, sobre essa coisa de doses letais e reações químicas que acontecem dentro dos organismos vivos. Candido escutava aquilo tudo com uma atenção concentrada e respeitosa, comentava as coisas que o médico lhe dizia e fazia perguntas que demonstravam sua sede de conhecer, de entender, de saber mais. O rude homem de lida respeitava aquele médico de fala mansa, maneiras suaves e mãos lisas e delicadas. O médico tinha grande apreço por aquele homem de mãos calosas e maneiras desconfiadas que, às vezes, se punha a cismar e, de repente, soltava sem mais uma pérola de sabedoria simples.

terça-feira, 15 de março de 2011

As primeiras histórias

Candinho foi contando suas histórias do jeito que saiam e eu fui dando forma e sequência a elas, o que tem sido como montar um quebra-cabeças. O que se refere ao tempo mais antigo, quando nosso protagonista era criança pequena, e cujo resgate depende exclusivamente de seu testemunho, como as coisas sobre o Véio Dito (alguém que, ao que se sabe, nunca existiu oficialmente) e a pequena Eurodites, que talvez tenha vivido de um ano e pouco a dois anos e não apenas poucos dias como está escrito em mais de um lugar aqui nesses textos. Candinho acha que sua irmã caçula teria sobrevivido para se mudar com a família do bairro do Ubá para a cidade de Santo Antonio da Platina, mas, por outro lado, também tem quase certeza de que a pequena não chegou a completar dois anos, uma possibilidade inviabilizando a outra. Não há mais como saber com certeza o que foi mesmo que aconteceu, mas isto não é completamente relevante para nossa saga. Neste início do primeiro grande ciclo, mais que a precisão, o que importa é o sabor e o colorido das narrativas. Há menos de um século existiam ex-escravos agregados às famílias a quem tinham pertencido, e a morte de uma criança nova era coisa corriqueira. Aqueles casais tinham dez ou doze filhos para que sobrevivesse, na melhor das hipóteses, a metade desse número.

Anotações no borrador

Cândido mantinha um livro-caixa que ele chamava de borrador, onde anotava minuciosamente todos os negócios do sítio e exercitava sua letra tosca e preciosa em traços de bico de pena: cada tostão ganho, cada tostão das despesas da casa, quantos animais, qual o tamanho da área plantada com cana, com café, com milho, quanta rapadura tinha sido vendida para quem, quantas galinhas e quantos ovos, quem eram as pessoas que trabalhavam em que para que isso acontecesse... Absolutamente tudo o que dissesse respeito à movimentação de produtos, valores, seres e acontecimentos da propriedade e da família. Numa das páginas desse livro-caixa estava registrada em valores numéricos e anotações uma história que Candinho ouviu ser comentada muitas vezes ainda bem novinho: contava de uma ocasião quando Cândido tinha que entregar certa quantidade de ovos, outra de galinhas e ainda outra de café em coco para comerciantes em Jacarezinho, depois de uma jornada de dezoito a vinte quilômetros pelos rudes carreiros da região, sacolejando com toda a carga em cima do carro de boi. A grande preocupação do pai de Candinho era a segurança dos ovos e das galinhas. Habilmente ele organizou as sacas de café de modo a formarem um espaço vazio no centro da pilha, espaço este guarnecido com folhas de bananeira, onde foram aninhadas as duzentas dúzias de ovos, enquanto as trezentas galinhas foram amarradas pé com pé e dependuradas de cabeça para baixo nos fueiros do carro. Fazia calor e o caminho era longo até o destino final. Caiu na estrada e começou a chacoalhar. O dia estava firme e claro, e não houve grandes contratempos no trajeto. Demorou pouco mais de cinco horas e, ao chegar, antes mesmo do primeiro gole d’água, foi contabilizar os números da travessia: vinte galinhas sobreviventes e apenas três ovos quebrados. Durante anos a fio o caso foi lembrado e comentado, com uma espécie de atitude assombrada, mas cheia de bom humor. Candinho escutou essa história uma porção de vezes, tanto que se lembra dela como se ele mesmo a tivesse vivido, e chegou a ver as anotações que seu pai tinha feito no borrador, uma série de traços e sinais misteriosos de que ele ainda não compreendia o significado.


A semente de laranja


Aurora tinha 7 para 8 anos em 1915, e morava com os pais e irmãos no sítio do Ubá. Na tarde de certo dia, ela chupou uma laranja. Até aí nenhuma novidade. Mas aconteceu que, dois dias depois a menina começou a sentir um incômodo ligeiro numa das narinas, que foi aumentando aos poucos e se transformando numa dor forte e constante. Pouco tempo depois sua cara começou a inchar de um jeito muito esquisito, ela tentava se assoar e não conseguia, nem parava de fungar, de chorar e de se sentir cada vez mais aflita. O negócio ficou desesperador. Cândido e Etelvina, preocupados com a situação, se aviaram rapidamente para levar a menina até Jacarezinho, lá no consultório do Doutor Gustavo Lessa, que a examinou de pronto e, depois de ter conseguido acalmar a pequena, pegou uma longa pinça e a enfiou na fossa nasal de Aurora, tirando de lá pouco depois uma semente de laranja já lançando um broto verde para fora da casca. Foi um alívio indescritível, de que ainda se falaria muito tempo depois, e mais uma história que Candinho se lembra de tanto ter ouvido falarem sobre ela quando ainda era criança pequena.

Eurodites

Em 1920, quando nosso protagonista tinha 2 anos de idade, veio a nona – e, ao que saiba Candinho – última gravidez de Etelvina. Nasceu então a pequena Eurodites, a caçulinha do clã, que mal teve tempo para ser batizada. Veio ao mundo mirrada e fraquinha, e sobreviveu por poucos dias após o nascimento. Foi o Véio Dito a providenciar, numa manhã bem cedo, antes mesmo do primeiro canto dos pássaros, o enterro da menina. Sossegadamente e em silêncio, como era de seu feitio, o Véio Dito cavoucou num recanto afastado da propriedade e fez um buraco estreito e profundo onde o pequeno corpo foi deixado para o retorno à sua primeira mãe. Depois ele e os que o tinham acompanhado para aquele último adeus, rezaram para o sol da manhã.

terça-feira, 1 de março de 2011

O Sítio

Viviam do que a terra lhes concedia em troca do seu trabalho e respeito. Possuíam um pequeno sítio no Ubá, que produzia cana, café em coco, algodão em pluma, milho, feijão, mandioca e abóboras; tinham sempre ovos de uma galinhada criada solta, porcos, vacas leiteiras e seis parelhas de bois de tração bem rústicos e pesados que eram usados para transportar fosse o que fosse de carro e também para mover o engenho que moia a cana. Os bois trabalhavam presos pelas cangas, grandes peças de madeira em forma de ferradura que se fixavam como colarinhos nos pescoços dos animais e eram guarnecidas com almofadas de capim ou paina, forradas com sacos de estopa ou outro tecido grosseiro para não cortar a pele dos animais com a constante fricção. Eram unidas por uma trave na qual se fixava o varal principal do carro ou as correntes que faziam mover o engenho vertical. As juntas eram sempre conduzidas por um pioneiro, boi mais velho ou mais pesado, líder natural que ia conduzindo os bichos e direcionando seu destino, puxando o carro ou andando em círculos para movimentar a moenda de cana.


A cana cortada na roça ia arrumada sobre os carros em enormes feixes e assim puxada até o engenho. Era então descarregada, empilhada estrategicamente na entrada do barracão e os bois desatrelados eram deixados descansando, ruminando ou bebendo água por alguns minutos até, pouco depois, serem colocados para mover a máquina de madeira, composta por três toras roliças paralelas encostadas na vertical. A tora do meio era mais grossa e longa que as outras e tinha um eixo que ia encaixado numa perfuração da pesada trava horizontal que a ancorava acima. Logo abaixo dessa trava, fixada no tronco maior, projetava-se uma alavanca da qual pendiam correntes que seriam atreladas às cangas dos bois, a força de tração que movimentava todo o conjunto, idealizado e construído por Candido antes de Candinho nascer. Entre as três toras, firmemente travadas acima por outra peça de madeira que ficava logo abaixo da alavanca, e afixadas no chão numa pesada base (que talvez fosse) de concreto, funcionavam engrenagens de madeira que faziam o engenho trabalhar. A cana era esmagada entre a tora central e as laterais, e a garapa extraída escorria por uma canaleta de madeira até um depósito que ficava embaixo desse conjunto, em cima da base. Era um cocho fixo (Cochos são caixas de madeira, às vezes feitas com tábuas encaixadas e cheias de água até encharcar e inchar vedando os encaixes, às vezes feitos com troncos cortados pela metade e escavados, estes utilizados principalmente na alimentação dos animais) com uma bica que derramava a garapa em baldes ou cochos menores que podiam ser transportados até o galpão anexo, onde esse caldo era derramado nos enormes tachos de cobre ajeitados sobre fogões de pedra em que ardiam grandes fogueiras alimentadas à base de muita lenha seca. A miúda e ativa Etelvina cuidava de tudo ali, desde que a cana chegava ao engenho até que, no barracão quente como uma fornalha, depois de horas e horas fervendo e apurando o caldo, mexendo sempre, sem parar, até formar o melado, o melado engrossar e chegar ao ponto de rapadura. Aquela pasta doce e fervente era despejada então num tablado de madeira com moldes quadrados e alisada com uma longa espátula ou pá até preencher cada um dos espaços. Horas depois, quando aquilo já estava frio, era raspado por cima para tirar o excesso e os tijolos, depois de desenformados e embrulhados na palha de milho estavam prontos para a comercialização.

Rapadura era o principal produto do sítio, o que dava condições de sobrevivência à família, e os bois eram a força bruta que fazia as coisas funcionarem por ali. Candido e o Véio Dito administravam canavial, pastagem e bois, mas era Daniel o responsável pelo bem estar dos animais: os bichos ficavam soltos no pasto até a hora da lida, quando então eram reunidos e atrelados aos carros que iam buscar a cana, desatrelados na volta da roça, depois presos ao engenho para movimentarem a moenda. Cumpridas as tarefas, eram levados de volta até o pasto para descansarem até o dia seguinte, quando então começaria tudo de novo.

De tempos em tempos, Candido levava as rapaduras para Jacarezinho e, menos vezes, para Santo Antonio da Platina, para serem comercializadas. Iam, em cada pacote, dois tijolos de até 1 kg de peso cada, embrulhados juntos na palha de milho, empilhados no carro de boi com outras mercadorias, sacolejando até o destino final. Jacarezinho era a maior cidade e centro regional daquelas redondezas, e o carro também servia para transportar a família ou parte dela para irem até lá (ou até Santo Antonio da Platina) passear, visitar um amigo ou parente, se consultar com o médico, Dr. Gustavo Lessa, pegar remédios na farmácia do Otacílio Fortes, comprar mantimentos.
Este é um período quase lendário da vida do protagonista desta história. Candinho tem lembranças muito vívidas da infância e juventude, de boa parte das coisas mais importantes que terminaram por constituir seu caráter e personalidade. É também, do ponto de vista do organizador destas memórias, o material mais rico e que mais puxa pela imaginação, por serem eventos acontecidos quase um século atrás numa região rude e selvagem que, hoje, é o norte do Paraná, uma imensa área maior que alguns países, onde a terra foi dividida e cultivada, pontilharam cidades, quase que se acabaram as matas e dificilmente seria reconhecida por um cidadão daquela época hoje, mais de 80 anos depois.

A Família

Hoje, mais de nove décadas depois do nascimento de Candinho, é quase impossível saber exatamente quando foi que a família chegou à região. Não restaram documentos escritos, há muito poucas fotos e Candinho, o único sobrevivente do grupo original, nasceu no Paraná e não sabe ou não tem certeza sobre muitas coisas de antes de seu nascimento. A página da prefeitura de Santo Antonio da Platina na internet registra, na pesquisa do historiador Israel Pereira de Castro, entre as famílias pioneiras chegadas no ano de 1898, uma de sobrenome Coelho (Souza Coelho ou Coelho de Souza), o que combina com a época, o local e o apelido de Candido Coelho pelo qual nosso Candido Bonifácio de Souza era conhecido por todos. Parece que teriam chegado, na mesma leva ou em períodos próximos, vários ramos da família: pais e filhos mais velhos já com suas próprias famílias, irmãos, tios e primos – às vezes netos, mas nada disto é uma certeza absoluta. De todo modo a história da família se insere numa época em que a cultura do café estava se expandindo desde o interior de São Paulo e entrando pelas terras roxas e férteis do Norte do Paraná, e a ferrovia – que até então chegava a Ourinhos, logo do outro lado da fronteira, no estado de São Paulo – ia logo chegar ali na região de Santo Antonio da Platina, lançando um ramal na direção dos Campos Gerais, no centro do estado, onde se encontraria com a estrada que subia desde os pampas gaúchos, e outro ramal para oeste, por onde embrenharia pelos sertões do Norte do Paraná civilizando a região e disseminando cidades ao longo da linha no decorrer das décadas que viriam. Candinho nasceu poucos anos antes disso começar, pouco antes da Cia. de Terras Norte do Paraná, da São Paulo – Paraná Railway, da Paraná Plantations, do projeto inglês de colonização... Ou quase que ao mesmo tempo em que isso tudo. Ele é pouca coisa mais velho que o Norte Novo do Paraná.

A família era composta por, além dos pais Candido e Etelvina, cinco irmãos: pela ordem de idade, a mais velha era Aurora, depois vinham Daniel, Valdemar, Edward (chamado Edevarde, apelidado Ides) e, finalmente, Candinho, o caçula. Dessa filharada, dois já tinham ido antes de 1918 – Heitor e José – e, um ano e pouco, dois anos depois de Candinho, ainda nasceria Eurodites, que não sobreviveria mais que uns poucos dias.

Vivia agregado a eles um ex-escravo, liberto pela lei Áurea, um bom Preto-Velho, sábio e solene: o véio Dito. Dele não se sabia com certeza a idade. Só que já era adulto em 1888, quando terminou a escravidão. Candido lembrava-se dele sempre com a mesma cara, desde que era bem novinho. Quer dizer que então, em 1918, ele já teria pelo menos sessenta anos, mas, supõe Candinho, devia ter mais de oitenta, talvez uns noventa, ou mesmo por volta dos cem, mas nisso não dá para confiar, porque Candinho era muito, muito novo mesmo, e ele se lembra da imagem do Véio de uma forma muito vaga, sabendo mais dele pelo que a família comentava, anos depois de sua morte, enquanto ele crescia, do que por uma lembrança direta. O Véio Dito era aquele tipo de ser que sempre esteve lá, como a voz do pai ou o calor da mãe, a maior parte do tempo quase invisível e silencioso como uma sombra, mas que também sabia impor sua presença como poucos conseguem. Ao que se sabe, era descendente de uma longa linhagem de escravos. Seus pais, seus avós e os pais deles antes, sempre tinham sido propriedade da família de José Coelho e dona Inácia, e dos pais dele, e dos avós... Com o advento da Lei Áurea e a abolição, familiarizados como já estavam uns com os outros e interdependentes como eram naquela dura luta pela sobrevivência, permaneceu tudo como dantes. Dito vira o nascimento do jovem patriarca Candido no final da década de 1870 ou nos primeiros anos da de 1880, testemunhou e acompanhou-o enquanto ele crescia, constituía família e gerava seus próprios filhos com Sinhá Etelvina.