Etelvina tinha acabado de raspar o tacho e enformar a rapadura quente e ainda mole nas formas de madeira sobre o grande balcão, deu uma última vista d’olhos no interior do barracão, tirou o avental e pendurou-o num prego no mesmo pé direito onde a fraca lamparina a querosene estava pousada sobre um pequeno console de madeira. Esfregou as mãos e ajeitou o lenço na cabeça. Colocou sobre os ombros o casaco leve, pegou na lamparina e preparou-se para vencer os duzentos metros que separavam o engenho da casa. Estava exausta, enjoada do bafo quente e doce no meio do qual se movimentara nas últimas horas e um pouco mal-humorada. O canto do galo das quatro da manhã já havia soado há mais de meia hora, o que queria dizer pouco sono e mais lida logo mais. A madrugada era escura e fazia um friozinho. Enquanto caminhava, Etelvina ia se recordando vagamente de uma história que tinha ouvido duas noites antes a respeito de gente morta que voltava para atazanar os vivos. Não lembrava nem queria lembrar muito bem da história, porque àquela hora da madrugada, cansada e embotada como se sentia, sua mente estava se enchendo de pensamentos sombrios e ela já estava até ouvindo coisas, como um estalo muito suspeito atrás de si, no meio da treva. Por via das dúvidas apertou o passo e resolveu ganhar alguns metros passando pela cerca de arame que ela preferia não ter que atravessar a essa hora, mas que, na madrugada fechada, a lamparina mal e mal iluminando a si mesma, Etelvina, com todo o medo que estava sentindo, ia abrir uma exceção. Quase sem perceber estava andando muito depressa, quase correndo. Atrapalhou-se um pouquinho para passar pelo arame farpado – ficou presa por um segundo, mas como a lamparina estava cada vez mais fraca, ela mais assustada e seus sentidos mais e mais alvoroçados por estalos, farfalhos e bufos, ela forçou até se desenroscar, e, vendo-se livre, desatou a correr com alguma coisa pisando nos seus calcanhares, quase pegando a barra da sua saia. De repente a lamparina havia desaparecido de sua mão, ela não sabia como, nem pensava nisso. Corria agora como uma alucinada, e sabia que a coisa estava quase em cima dela, cada vez mais próxima, pegando sua saia pela barra...
Candinho, de cinco anos, acordou naquela madrugada com os gritos da mãe e a movimentação que passou como estrondo pela casa de madeira. Ela falava muito alto e rápido, e o homem da casa, sonado e nervoso, espingarda na mão, saiu a esquadrinhar a noite nas proximidades. Não encontrou nada, só ouviu os pássaros começando a despertar e viu uns raios de luz cor de sangue surgindo no horizonte – Ainda demoraria um pouco para o dia amanhecer.
Mal clareou, em plena hora da luz confusa, e Candido saiu a percorrer ao contrário o caminho que a esposa fizera de madrugada. Etelvina ficou em casa e até tentou descansar, mas estava muito excitada e com a cabeça cansada demais para conseguir relaxar. Minutos depois, Candido retornou com uma cara pensativa e encontrou-a sentada na cozinha diante de uma grande caneca de folha cheia de café com leite. Pediu a ela que se levantasse porque queria vê-la dar uma volta para confirmar uma suspeita, examinou-a rapidamente e apresentou a solução do caso: mostrou a ela um grande e caprichoso rasgo atrás em seu vestido, que não se fazia notar quando ela estava parada ou num movimento mais calmo, mas que, na corrida, desfraldava e ficava arrastando atrás dela uma faixa do tecido que se movia serpenteando, farfalhando e enroscando-se nos obstáculos do caminho, dando-lhe a sensação de que algo a perseguia rente aos seus calcanhares, quase a pegando (Candido encontrara uns fiapos presos numa das farpas da cerca de arame, bem no ponto onde Etelvina atravessara, e reconheceu neles o tecido do vestido da esposa). A mulher relaxou e conseguiu enfim descansar. Remendou o vestido para poder ainda usa-lo na lida e tudo o mais voltou ao normal. Permaneceu um pequeno mistério dessa história toda: a lamparina a querosene nunca mais apareceu.