quinta-feira, 28 de outubro de 2010

22 de Maio de 1937

Candinho: Na época em que morávamos no Lageado o papai era subdelegado nomeado pelo delegado regional de Jacarezinho que era a comarca à qual pertencia o município de Santo Antonio da Platina, e pertencendo ao município de Santo Antonio da Platina o patrimônio e distrito judiciário do Lageado, criado pelo governo de Getúlio Vargas em 1929, que era onde nós morávamos. Era delegado regional, se não me falha a memória, Dr. Alcântara, em Jacarezinho, que era quem supervisionava a delegacia de Santo Antonio da Platina e a subdelegacia do Lageado. Tinha chegado recentemente, oriundo do estado de São Paulo, e sido nomeado delegado de Santo Antonio da Platina, o Osório Silva, que se casou com nossa prima Benedita, sobrinha de meu pai. Como meu pai era altivo e não gostava de receber ordens e o Osório Silva era um tipo mandão, prepotente e autoritário, inclusive com os policiais que o acompanhavam nas diligencias...
... A subdelegacia do Lageado era vinculada à delegacia regional de Jacarezinho, que era a comarca. Quando havia problemas a serem resolvidos referentes à subdelegacia do Lageado, meu pai não procurava o Osório e sim o delegado regional em Jacarezinho, com quem trocava informações sobre os problemas oriundos da...
... Em alguns casos o delegado regional dizia ao meu pai: “é, você pode tratar desse assunto com o delegado de Santo Antonio da Platina”, e meu pai não queria, dado a indisposição já existente entre eles, dar satisfação ao Osório Silva, mesmo ele sendo casado com a nossa prima. O Osório Silva ficou magoado, começou a fazer pressão política e pessoal, e não fazia questão de disfarçar que tinha mesmo uma diferença com o subdelegado, meu pai. Em pouco tempo, dada a divergência, meu pai pediu demissão e deixou o cargo... Não, ele não chegava a ameaçar, mas o que acontece é que com toda a pressão e indisposição... O Osório pressionou bastante o delegado regional de Jacarezinho para que substituísse papai na subdelegacia do Lageado...
... Foi nomeado o Jango como substituto do meu pai, indicado pelo Osório Silva. Em decorrência dessa nomeação é que ele passou a... – não perseguir diretamente meu pai e meus irmãos –... Mas demonstrava mau-humor e má vontade... Até que, na noite de 22 de maio de 1937...


22 DE MAIO DE 1937

Ouviam o noticiário. O rádio estava ligado na Inconfidência, de Minas Gerais. Passavam talvez vinte e poucos minutos das nove da noite de vinte e dois de maio de 1937, e Candinho tinha completado dezenove anos quinze dias antes. Dali a pouco iriam pegar o carreiro de uns seis quilômetros de volta pra casa, no sítio da família, só terminar de ouvir o que estavam falando na rádio... O bar já tinha sido de Cândido, então era tudo familiar: um espaço quadrado de uns dez metros, onde tinha uma sorveteira e algumas prateleiras no fundo. Candinho estava prestando toda sua atenção ao noticiário, mas a partir daqui ele não se lembra mais do que é mesmo que ouviam. Havia pessoas dentro do bar, mas Candinho não se lembra do que aconteceu com os outros. O objetivo era os irmãos, filhos do ex-subdelegado. Pode ser que Candinho estivesse mais perto do fim do balcão, mas a certeza é de que havia um desses baleiros de vidro giratórios bem ao lado de onde estava encostado. Ele não estava distraído, mas, mesmo assim, o movimento o pegou de surpresa. Reconheceu Jango e Elias Carvalho que lideravam os bandidos. Os jagunços pararam, meio passo para dentro, em todas as portas do bar, Jango declarou em alto e bom som que estava ali para desarmar quem quer que estivesse armado e, ato contínuo, começaram a atirar. Os irmãos Daniel e Valdemar estavam ali ao lado, e ele percebeu que Daniel soltava um gemido e levava as duas mãos à barriga enquanto sua cara se contorcia num esgar. Viu que Valdemar saía correndo pela porta da esquerda, e supôs que ele estivesse com o revólver Smith & Wesson calibre 32 que Cândido havia deixado com os irmãos para que se protegessem. Viu que os jagunços penetravam no bar e num instante, como um serelepe, não sabe bem como, estava já do outro lado do balcão enquanto o baleiro estourava com o tiro e as balas doces choviam sobre sua cabeça e pelo chão, misturadas com cacos de vidro. Ficou ali abaixado respirando forte e não viu mais o que aconteceu até que os estampidos cessaram. Candinho só ouvia sua própria respiração ofegante e os gemidos de dor de Daniel que se contorcia no chão, sangrando, baleado no abdome. Arriscou uma olhada para o lado de fora do balcão e não viu nada. Ouviu uns latidos distantes e sentiu a barriga gelada e a nuca dura. Sua cabeça estava clara como se tivesse acendido uma luz dentro dela. Saiu de seu esconderijo e viu Daniel, ferido e sangrando, que se erguia com dificuldade. Foi indo para a porta da esquerda, por onde Valdemar tinha saído, um pé depois do outro, e, de repente, estava na noite, do lado de fora. Viu o corpo do irmão, abatido a seis ou sete passos da porta, caído no chão de costas; abaixou-se e puxou-o pelo braço, pensou que estava dormindo ou desmaiado, chamou-o pelo nome e fez que tentou levantá-lo quando viu, num golpe de vista, dois dos pistoleiros encostados a uma cerca do outro lado da rua. Os pistoleiros também o viram e apontaram suas armas. Então Candinho correu como nunca antes em sua vida, alucinado e desorientado, sem saber para onde ir. Os tiros passavam perto dele e explodiam na poeira à sua frente...
... A Cesarina, irmã do Vicente Lino, que era o padrinho de crisma de Candinho, e dono de uma pensão que ficava alguns metros rua abaixo, estava indo para a cama quando escutou os tiros e a gritaria. Foi até a porta da rua, entreabriu-a e olhou para fora, à espera de que alguma coisa acontecesse. Após mais alguns intermináveis segundos de silêncio, ela escutou mais gritos e tiros, e viu que Candinho descia a rua, correndo feito louco... Candinho viu que a porta da pensão do padrinho estava entreaberta e ouviu chamarem o seu nome lá de dentro. Entrou correndo, encolheu-se num canto e ficou ali até ter certeza de que tinha passado. Foi uma longa noite em claro.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O lugar


A estrada que vinha desde Santo Antonio da Platina terminava na rua principal do Lageado, onde havia aí umas 50 casas de chão batido que ficavam dos dois lados dessa rua e, entre as casas, a espaços irregulares, abriam-se pequenas transversais que iam dar em picadas no meio do mato ou nas roças onde o povo dali trabalhava. Mais além, quase à beira do ribeirão, erguia-se a igrejinha de ripas de palmito coberta com tabuinhas, bem perto de uma mina de águas muito límpidas e cristalinas que abastecia a maior parte da população do lugarejo. Não era sempre que aparecia um padre para rezar a missa aos domingos – só uma vez ou outra, quando vinha um de Santo Antonio da Platina, quase sempre em ocasiões festivas. Então os católicos dali, tementes a Deus e cuidadosos de suas almas, reuniam-se na capelinha durante a semana para rezar o terço. E ainda em todas as ocasiões que a comunidade tinha que se reunir para decidir qualquer coisa, era lá que acontecia. Mas não demorou muito para o lugar ser elevado a paróquia e chegar um padre morador para colocar as coisas nos eixos.

Depois do Inverno...


Agora, já que acabou o Inverno, voltemos ao que viemos de fato fazer aqui. As primeira ações da Primavera serão a postagem de um trecho que conta a mudança da família de Santo Antônio da Platina para o Patrimônio do Lageado, alguns episódios acontecidos no patrimônio durante os dez anos que a família ficou por lá e o tema principal do TCC, que se refere à morte de Valdemar. Parte deste material já foi publicado em outras postagens, mas é aqui que começamos a localizar os eventos que resultaram na morte de Valdemar. Um pouco de narrativa agora e daqui a pouco voltamos ao trabalho acadêmico...

Mudança para o Lageado

Santo Antonio da Platina era praticamente uma comunidade rural. Todos dependiam, direta ou indiretamente, do trabalho no campo. Produzia-se milho e algodão, feijão e café, criavam-se porcos e galinhas. Cândido, após ter ele próprio trabalhado na roça, ganhando seu sustento e o da sua família como agricultor; tocado a serraria e depois uma carpintaria, estava agora com um pequeno comércio, um armazém de secos e molhados que fornecia mantimentos, ferramentas, tecidos e miudezas, negociando, como se fazia naquela época, na honradez do fio de bigode e nos valores anotados em caderneta, pagos sem juros em 30, 60 ou 90 dias, ou quando os produtos da terra eram comercializados.
Aquele ano de 1928 foi especialmente difícil. No ano anterior uma série de condições desfavoráveis havia comprometido os resultados do trabalho do campo e todos estavam sem dinheiro para acertar suas contas: os porcos foram acometidos de peste e centenas deles tiveram que ser sacrificados; choveu torrencialmente no último período de colheita de algodão e quase toda a safra se perdeu; as espigas de milho não granaram direito e deram uns grãozinhos minúsculos e duros como pedra que até as galinhas rejeitavam, ou então mofaram e apodreceram fechadas nas palhas. E, como se não fosse suficiente, bastaram alguns dias de sol depois da chuvarada e a cidade foi invadida por milhões de mosquitos, que saiam a devorar as pessoas todos os fins de tarde. A cidade amanheceu com malária. Dezenas de homens fortes não puderam se levantar de suas camas e ali ficaram dias, batendo os dentes com a febre terçã (Candinho sabe, mais ou menos, de cinco ou seis mortes pela febre entre bebês e pessoas muito velhas e já doentes). O trabalho nos campos quase parou. A sobrevivência começou a ficar muito difícil naquela situação e o fantasma da fome começou a assombrar aquela gente. Parecia praga bíblica.
A venda de Cândido chegou à beira da falência e alguma coisa precisava ser feita a respeito. Não muito longe dali estava sendo implantado o patrimônio do Lageado, que depois seria Carvalhópolis e, depois ainda, município de Abatiá. O chefe da família tinha ouvido falar bem do lugar. Dizia-se que, ali, a doença dos porcos não havia chegado e os produtos da terra tinham dado bem naquela safra. Várias pessoas e famílias mineiras da região de Ubá que eram suas conhecidas estavam indo para lá. Viajou até o patrimônio e fechou negócio numa grande casa de madeira que tinha um salão de frente onde daria para acomodar muito bem o negócio de secos e molhados, e alguns aposentos de fundos onde poderia instalar toda a família. Ficou decidido que eles mudariam para o Lageado.

Foram necessários vários dias, três carros de bois e cinco carretas de burros para acomodar tudo, a mudança da família e o estoque do armazém. Foi construído um pequeno engradado de madeira para acomodar a gatinha vira-lata que dormia na despensa e servia de mascote para as crianças e, numa manhã mal começada, logo aos primeiros raios de sol, Cândido vistoriou os volumes, ajeitou uma coisa aqui, outra ali, conferiu as amarras das cargas e se o pessoal estava bem instalado, tomou assento ao lado do condutor do primeiro carro e deu a ordem de partida.
Era uma viagem de pouco mais ou menos que 30 quilômetros até a margem do ribeirão Lageado. Fariam uma rápida passagem no bairro de Santa Joana, onde pegariam mais um volume na casa de parentes, a meio caminho do rio das Cinzas, primeira etapa da viagem. A comunidade do Lageado ficava do outro lado do rio que tinha que ser transposto através de uma balsa movida a tração humana num trecho de uns 80 a 100 metros de largura. Chegaram à margem no meio da tarde do primeiro dia, e então começou a complexa operação de travessia: de um em um ou dois em dois, de acordo com suas cargas e para manter o equilíbrio na embarcação tosca, eram embarcados os carros ou carretas com seus respectivos carreiros e um ou dois membros da família, mais os balseiros de braços fortes que puxavam os cabos de aço esticados como varais entre uma e a outra margem do rio e que corriam por roldanas.
Quando chegaram, tudo e todos, enfim, do outro lado, já era noite. Restava fazer alguma coisa ligeira para comer e bivaquear até a madrugada seguinte, para saírem antes do sol nascer.
Foram dois dias de jornada dessa caravana desde Santo Antônio até o Lageado, e eles chegaram no entardecer do segundo dia de viagem. Nem bem pararam os carros, Cândido abriu as portas de seu novo armazém e casa, improvisou um balcão com caixotes e expôs a mercadoria que tinha trazido: tecidos e sal; pó de café e ferragens; calçados e querosene; farinha e agulhas; charque e açúcar; feijão e toucinho; macarrão e lamparinas. A gata foi libertada de seu engradadinho de madeira, estudou um pouco as redondezas e não encontrou sua casa por ali, então sumiu pelo mundo. Passaram a maior parte da noite ajeitando as coisas, ocupando os espaços vazios, limpando, entrando na função madrugada adentro. Certa hora Candinho não viu mais nada porque desabou e foi colocado para dormir numa das camas que Etelvina e Aurora já tinham preparado. Acordou dia claro, com o armazém já em pleno funcionamento. Candinho e Ides saíram para explorar o lugar; foram até a beira do ribeirão, a igrejinha de palmito, encontraram outros garotos, conversaram, se conheceram e perguntaram pela gata. Ninguém a tinha visto.
O patrão abriu cedo seu comércio naquele dia de inauguração, os negócios correram muito bem e ele ficou entusiasmado. Já no primeiro dia Candinho fez alguns pequenos trabalhos no armazém, levando e trazendo uma coisa ou outra de lá para cá e daqui para lá, mas só assumiu a responsabilidade por tarefas mesmo lá pelo terceiro ou quarto dia, quando as condições e caminhos do local passaram a ser melhor conhecidos.
Lá pela metade da segunda semana após a chegada ao Lageado, Candinho e Daniel, o mais novo e o mais velho dos filhos homens, foram a cavalo até Santo Antônio da Platina para encerrar uma coisa ou outra. Foram primeiro direto para a casa de uma tia, onde encontraram a gatinha (ou a gatinha os encontrou), que havia chegado ali de volta mais ou menos uma semana depois da mudança, miando de dar dó, desesperada de fome, ferida e cansada da longa, arriscada e solitária aventura por aqueles ermos selvagens e cheios de perigos. Quantas lutas não teria aquele bichinho enfrentado? Quando a gatinha viu os meninos esfregou-se nas pernas deles e deu grandes mostras de reconhecimento, mas eles nem pensaram em levá-la de volta para o Lageado. Ali ela ficaria, como recompensa por sua esperteza, tenacidade e bravura, senhora do território que conhecia tão bem e para onde tinha conseguido voltar enfrentando um trecho tão perigoso e difícil. Como teria ela atravessado o rio caudaloso na volta?  Nunca mais ninguém tentou tirá-la de casa e ela morreu de velha vários anos depois.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O Material

O último texto postado contava a história da criação do Distrito Judiciário do Lageado, ocorrido em 1929, e do decreto de Getúlio Vargas que determinava que todos os cartórios fizessem gratuitamente o registro civil de quantos cidadãos brasileiros os procurassem para esse fim. Candinho já aprendera a escrever com o professor Cunha, que aplicava bolos de palmatória nos alunos malcriados, anos antes, em Santo Antonio da Platina, e entrou para trabalhar no cartório com a primeira máquina de escrever que via na vida. Datilografou centenas de registros de nascimento e certidões de casamento, escreveu cartas e mais cartas a parentes distantes para mostrar a eles como se dava bem com aquela impressionante novidade tecnológica e como o distante lugar conhecido como Lageado já fazia parte do mundo moderno.
Na narrativa estão localizados vários elementos que remetem aos grandes ciclos da história do Brasil, e vários elementos de uma história particular. A criação do distrito, o decreto getulista, o cartório, a máquina de escrever, os registros civis, tudo faz parte de uma memória única, ao mesmo tempo histórica e pessoal. A nomeação de Candido como subdelegado começa a indicar para a rixa com o delegado regional Osório Silva, mas este é assunto para o TCC. Aqui é o trabalho de tópicos de contemporânea.
Utilizando a narrativa como exemplo ou introdução à proposta propriamente dita, a ideia é que os alunos pesquisem e tragam para a sala de aula dados de suas memórias pessoais ou familiares, e trabalhem com esses dados construindo representações referenciadas no contexto social e/ou cultural da época e local a que se referem (no caso da narrativa em questão, o Distrito do Lageado nos anos de 1929/30). O que o pai (ou mãe, avô ou avó, bisavô ou bisavó) fazia enquanto a Grande História acontecia? Onde ele estava, onde morava, no que pensava? Qual o significado dessas coisas para mim? O que acontecia nos outros lugares enquanto isso?
O texto que conta sobre a criação do Distrito Judiciário e da Subdelegacia do Lageado e as fotos já postadas neste blog serão utilizados como pontos de partida para os efeitos de construção deste projeto.
As fotos, uma que mostra o povo do Patrimônio reunido para a festa de Santo Antonio no dia 23 de Junho de 1928 e a outra, que mostra quatro dos habitantes do local (um desconhecido, dois irmãos mais velhos e o pai de Candinho), segundo meu pai foram tiradas no mesmo dia e são todo o registro fotográfico de sua infância e do período em que sua família morou no Lageado:

[...] Para ali acorreu um fotógrafo viajante que estava vindo de Santo Antonio da Platina com seu tripé, sua máquina de caixote e sua mala de equipamentos. Montou seu estúdio debaixo de uma árvore que oferecia boa sombra e começou a trabalhar. Candinho tem só duas fotos do Lageado, e garante que foram todas tiradas no mesmo dia – neste dia e pelo fotógrafo itinerante (de quem o nome, até prova em contrário, está irremediavelmente perdido) que chegou com sua equipagem e passou o dia – uma parte do outro também – fotografando tudo o que fosse fotografável por ali. É desse dia a única fotografia conhecida de Candinho na infância. Ele é o terceiro da esquerda para a direita, quase irreconhecível, mas note-se o pano na canela, o chapeuzinho na cabeça, as mãos nos bolsos e a pose meio que atrevida. Tem ainda um rapazote à sua direita que pousa a mão em seu ombro e que Candinho não faz a menor ideia de quem seja (ou era). [...]

Estrutura das atividades:
Análise das fontes (narrativas e imagens) no contexto dos grandes ciclos da história e à luz do que elas revelam em termos de cultura material: a foto que abre este blog, por exemplo, uma das duas que restaram do Lageado, mostra como era, em 1928, o lugar que hoje faz parte do centro de uma cidade do Norte Pioneiro do Paraná, Abatiá. Como era aquela paisagem, como são as construções que aparecem, como se vestem, como se parecem as pessoas. Em outra abordagem do mesmo material, colocar a figura do fotógrafo itinerante naquela época e contexto, a relativa dificuldade de se registrar imagens e a importância de um personagem assim para, por exemplo, propiciar a única foto que se tem notícia de Candinho na infância. Ou depois, com o caso da máquina de escrever, como é, para uma criança do século XXI imaginar que não tão longe daqui no tempo e no espaço a coisa mais parecida que havia com um computador de hoje era a máquina de escrever mecânica. Incentivar os alunos a fazer o papel de pessoas que vivessem naquelas condições.
Realização de uma pesquisa dos estudantes em suas casas sobre itens de suas memórias pessoais ou familiares; objetos, imagens, depoimentos orais, relacionados à época pesquisada. Formação de pequenos grupos por afinidade que farão um trabalho de construção de representações relacionadas com o tempo e o contexto do tema do estudo a partir dos itens de memória que tenham coletado.

Como:
Leitura dos textos e exposição das imagens e discussão aberta sobre eles; pesquisa e apresentação dos resultados desta; formação dos grupos, por afinidade temática ou outras; construção e apresentação das representações (cartazes, Histórias em Quadrinhos, trabalhos escritos, colagens, representações teatrais, Hip Hop, qualquer linguagem).
O professor será aquele que, primeiro apresentará o contexto da história dos manuais, depois a proposta da história particularizada, e será responsável por toda a dinâmica da pesquisa, da formação e orientação dos grupos, além de facilitador no sentido de que fará as necessárias pontes entre a história particularizada por um recorte ou item de memória pessoal e familiar e a história dos grandes eventos. Funcionará, nesta fase, como uma espécie de coordenador e consultor de roteiro das montagens e apresentações...

Ainda está incompleto. Como já foi escrito em alguma das postagens anteriores, isto aqui é um trabalho em construção e as últimas postagens foram feitas com o objetivo de cumprir a tarefa de avaliação da disciplina de Tópicos de Ensino em História Contemporânea, primeiro semestre do ano letivo de 2010. O trabalho não seguiu rigorosamente o roteiro proposto, mas creio que conseguiu dizer ao que veio, embora esteja mais parecido com um projeto de oficina. Por outro lado, o processo de acabamento desses textos e montagem do blog tem sido de enorme valia para a formatação de meu projeto de TCC. Este trabalho está entregue aqui, mas o blog continua.

Aqui fecha o parênteses)

Referências Bibliográficas

Livro didático:
PERUZIN TUMA, Magda Madalena: Coleção Viver é Descobrir... História do Paraná – Editora FTD, 1ª edição – SP, 2008

Memória, biografia, testemunho:
BOURDIEU, Pierre. L’Illusion Biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales (62/63): 69 – 72, juin 1986

FRANK, Jean & LANDIERA FERNANDEZ, J.: Rememoração, Subjetividade e as Bases neurais da Memória Autobiográfica – Psicologia Clínica, vol.18, nº. 01, pág. 35 – 47, Rio de Janeiro, 2006

GAUER, G. & GOMES, W.G.: A experiência de recordar em estudos da memória autobiográfica: aspectos fenomenais e cognitivos. Memorandum, 11, 102-112.- http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/gauergomes01.pdf 102 Memorandum 11, out/2006 – Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP

KOLLERITZ, Fernando: Testemunho, Juízo Político e História – Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº. 48, p. 73-100 – 2004

Conjuntura:
MÜLLER, Nice Lecocq: CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO NORTE DO PARANÁ - revista Geografia, Londrina, v. 10, n. 1, p. 89-118, jan./jun. 2001

RAGGIO, Nadia Zaiczuk: Norte Novo do Paraná: Transformações no Campo e a Questão do Acesso à Terra – dissertação de mestrado em sociologia – Unicamp, Campinas, 1985

CANCIAN, Nadir Aparecida: Cafeicultura Paranaense 1900/1970 – Grafipar, Curitiba, 1981

Fonte Primária: Depoimentos de Candido Batista de Souza, meu pai Candinho, narrados por ele, gravados e transcritos por mim, trechos de livro em preparação. Memória, história oral.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Tópicos de Contemporânea

(Aqui abre um parênteses para o trabalho de tópicos de contemporânea -

informações de capa
Depois de algum tempo sem postagens (isto aqui é um trabalho em construção e obedece ao tempo da vida que, num final de semestre, quando se tem que concluir coisas ao mesmo tempo em que surgem tarefas novas, sem internet instalada em casa e dependendo de lan houses e dos computadores da UEL, passa com muita velocidade), uma postagem pontual, destinada a cumprir uma tarefa de avaliação da matéria de Tópicos de Ensino em História Contemporânea, do quarto ano de graduação em História da Universidade Estadual de Londrina, do Centro de Letras e Ciências Humanas, Departamento de História, disciplina sob responsabilidade do Professor Doutor José Miguel Arias Neto.

Este trabalho já está sendo feito dentro de uma linguagem virtual e contemporânea por si mesma, mas este não é o formato definitivo dele. O blog é um laboratório onde serão experimentadas formas de linguagem e utilização para o trabalho. Aqui, a ideia é criar – ou projetar – um material didático destinado à 5ª série do ensino fundamental a partir do livro didático que foi objeto de trabalho entregue há poucos dias, e do tema (ou de assuntos) presente(s) neste trabalho. O material proposto aqui pretende que os alunos experimentem a história colocando-se mais pessoalmente nela, a partir de referências reconhecíveis, fatos e/ou personagens particulares inseridos na Grande História e que lhes digam respeito de forma mais ou menos direta.
Para tanto serão trabalhadas a análise de documentos escritos e imagens e o suporte metodológico da história oral. Os alunos deverão trazer à sala de aula documentos, imagens, objetos ou narrativas que se refiram à época ou aos tipos de personagens abordados pela história da formação do Norte do Paraná, estes elementos contextualizados dentro do tema da(s) aula(s) e os alunos incentivados a estabelecer uma empatia com o assunto pesquisado.
A seguir um trecho das memórias de Candinho que pode ser usado para uma aula ou apenas a título de exemplo aqui:

Distrito Judiciário do Lageado
Foi criado em 1929, e o Cartório Distrital colocado sob o comando do jovem, dinâmico e letrado Aldo Claro de Oliveira. Candinho, com onze anos de idade, foi convidado a trabalhar e a pilotar a grande novidade que chegava ao local junto com essa espécie de independência: a primeira máquina de escrever que se via por ali. Chegava a ser assombrosa aquela engenhoca mecânica. Candinho ficou encantado com a oportunidade de experimentar sua habilidade e inteligência naquele mecanismo misterioso. Catando um milho aqui, outro acolá, ele preenchia, todo orgulhoso, laudas e laudas com aquela tipografia tosca, principalmente cartas para parentes distantes, tanto para demonstrar sua própria desenvoltura na escrita e na habilidade de datilógrafo quanto para autenticar, sem deixar espaço para dúvidas, o fabuloso progresso que então ocorria no Lageado.
Foi por aqueles dias mesmo que um decreto do presidente recém assumido, Getúlio Vargas, determinou que todos os cartórios fizessem, gratuitamente, os registros civis de quantos brasileiros os procurassem. Então começaram a chegar levas de pessoas, principalmente analfabetos, principalmente da zona rural, com listas de seis, oito, dez ou doze filhos; meninos e meninas recém nascidos ou com até poucos meses de vida, e rapazes e moças de dezesseis, dezoito, vinte e dois anos, muitos dos quais não se sabia com certeza o dia, o mês ou até mesmo o ano em que haviam nascido. Também casais que já conviviam há muito tempo e nunca tinham se casado iam até o cartório para regularizar a situação. Candinho tinha a função de fazer a relação dos filhos, arrumar pessoas do próprio patrimônio para assinarem como testemunhas, proceder ao preenchimento dos documentos e, depois de assinado pelas testemunhas e pelo escrivão, entregar aos pais o registro civil daquelas pessoas cujos nomes tinham sido trazidos para esse fim, ou aos felizes casais que, enfim, estavam regularizando sua situação. O governo queria incrementar o alistamento eleitoral. O cartório mantinha algumas testemunhas sempre de prontidão, e estas assinavam em quase todos os casos. Candinho trabalhou muito nesse período, até criar calos nas pontas dos seus dedos indicadores de tanto caçar letrinhas na máquina de datilografia.
Além do cartório, com a criação do Distrito Judiciário veio também a subdelegacia, construída uma cadeia de madeira numa praça do patrimônio e Candido, homem muito conhecido e de boas relações por ali, além de aliado e amigo de primeira hora de Aldo Claro de Oliveira, foi nomeado o primeiro subdelegado.
...
Próximas postagens, a construção do projeto de material didático e os dados complementares deste trabalho.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

As fotos do Lageado

Da esquerda pra direita os personagens são: Luciano, um chacareiro no Lageado, meu tio Valdemar, meu tio Edward, Nhô Candido Bonifácio de Souza, mais conhecido como Candido Coelho

quarta-feira, 16 de junho de 2010

trechos

Segundo Candinho, entre o final do ano de 1927 e o início de 1928 ocorreu um grande revés nas expectativas de produção de Santo Antonio da Platina. Além de uma praga que acometeu os porcos, fazendo com que centenas deles tivessem que ser sacrificados, um período de intensas chuvas acabou com as safras de milho e de algodão e, num curto espaço de tempo após o término do aguaceiro, houve um aumento significativo na quantidade de casos de malária na cidade. O lugar era pequeno e dependia basicamente da agricultura de subsistência, da pequena criação e do pequeno comércio, e isso teria ocasionado uma grande crise – grande até que ponto é difícil saber, mas grande o bastante para afetar profundamente a vida de Candido e de sua família, e para parecer a Candinho, com menos de 10 anos, o equivalente a uma praga bíblica.

[...] A venda de Candido chegou à beira da falência e alguma coisa precisava ser feita a respeito. Não muito longe dali estava sendo implantado o patrimônio do Lageado, que depois seria Carvalhópolis e, depois ainda, município de Abatiá. O chefe da família tinha ouvido falar bem do lugar. Dizia-se que, ali, a doença dos porcos não havia chegado e os produtos da terra tinham dado bem naquela safra. Várias pessoas e famílias mineiras da região de Ubá que eram suas conhecidas estavam indo para lá. Viajou até o patrimônio e fechou negócio numa grande casa de madeira que tinha um salão de frente onde daria para acomodar muito bem o negócio de secos e molhados, e alguns aposentos de fundos onde poderia instalar toda a família. Ficou decidido que eles mudariam para o Lageado. [...]

[...] Na história oficial de Abatiá, disponível na internet, consta que: “Em 1925, um grupo de pioneiros, formado por Antonio Maria, João Carvalho, Candido Coelho, José Vicente Ramalheiro e Manoel José Pereira e suas famílias, estabeleceu-se no lugar conhecido pelo nome de Lageado nas margens do Rio Laranjinhas, criando um Patrimônio que deu origem ao atual Município de Abatiá.
Nos primeiros tempos, a localidade era conhecida pela denominação de Lageado, passando, mais tarde, a denominar-se Carvalhópolis, em homenagem a João Carvalho, um de seus fundadores.
A cultura do café constituiu, sempre, mais importante fonte de riqueza do município.”

Candinho conta que o citado Candido Coelho era, na verdade, seu pai, chamado assim por conta do sobrenome do pai dele que lhe servia de referência entre os colonos desde o bairro do Ubá, ou desde antes mesmo, em Minas Gerais, até o Lageado (mas isto já foi dito antes). Que João Carvalho era o pai do Elias Carvalho que, anos depois, viria a ser um dos assassinos de seu irmão Valdemar. Que, sim, os outros já estavam por ali antes, mas Candido e sua família se mudaram mesmo em 1928 – e corrige ainda que o lugar ficava às margens do ribeirão Lageado, entre os rios Laranjinhas e das Cinzas, e que o ribeirão talvez fosse (ele não tem certeza) um afluente do Laranjinhas. [...]

notas

Considerando que esta é a terceira postagem do blog e o primeiro texto a ser escrito especialmente para ele enquanto tudo ainda é apenas um rascunho, vamos começar a situar os objetivos desta empreitada. Como surgiu a ideia de coletar e organizar as memórias de meu pai já foi contado numa postagem anterior. Obviamente, o primeiro objetivo era escrever e publicar um livro, assim uma biografia romanceada como tantas outras que existem por aí. Nesses 10 anos muita coisa aconteceu – inclusive, depois de chegada à idade dos enta, achei por bem fazer um curso superior, e esta foi uma das decisões mais acertadas de minha vida. Entrei para a faculdade de História da Universidade Estadual de Londrina no ano de 2004 e fiz, até agora, um curso bem aproveitado, mas cheio de acidentes que não vem ao caso comentar aqui.
Juntando o fato de que a composição do livro se mostrou muito mais complexa do que eu poderia imaginar a princípio, mais as dificuldades associadas à publicação e distribuição, principalmente para quem não está já há tempos no mercado editorial, mais a perda e o consequente trabalho de resgate do material que teve que ser feito quando, meses atrás, a máquina deu pau – e ainda considerando a idade avançada de meu pai, que completou 92 neste ano, resolvi – com a imediata adesão de meu orientador do TCC, o professor Rogério Ivano (valeu, Rogério!), deslocar o tema de meu trabalho em alguns séculos e milhares de quilômetros – dos primórdios do Renascimento para os anos 20 e 30 do século XX, e do célebre desenho do Homem Vitruviano do mestre Leonardo da Vinci, executado na Florença de 1490, para uma morte obscura, acontecida por um motivo mais obscuro ainda, no lugar conhecido como Lageado, distrito de Santo Antonio da Platina, em 22 de maio de 1937.
A dupla função deste blog consiste, primeiro, em estabelecer um laboratório ou base de operações a partir da qual montar o TCC, e esta é uma tarefa pontual que tem um prazo estabelecido (final de 2011). Segundo, construir uma alternativa e uma vitrine que permita a visualização um trabalho que já está sendo realizado há uma década (o livro de memórias do qual meu pai é protagonista). São dois objetivos diferentes, que se referem ao mesmo material e se cruzam em vários momentos. O trabalho de história começa com a problemática da memória biográfica, do testemunho e da história oral, dos pontos de vista tanto historiográfico quanto cognitivo e psicológico; trabalha com os processos e tipos de personagens envolvidos nos eventos do recorte temporal e espacial (Santo Antonio da Platina e Lageado, anos 1920/30) tendo como primeiro ponto de referência as narrativas – ou os testemunhos – de meu pai, Candinho, interpretada(o)s e colocada(o)s em linguagem literária por mim. O que acrescenta um problema, que é o de meu envolvimento pessoal com a fonte primeira da pesquisa, embora isto não seja de todo relevante para a construção do trabalho de história, pois as reconstruções de eventos e fatos principalmente situarão acontecimentos fora de toda discussão: Valdemar morreu, baleado, na noite da data já citada, numa emboscada (ou talvez num entrevero) testemunhada por Candinho, que sobreviveu para recontar setenta anos depois, - e o fato de que isso aconteceu devido a uma rixa entre meu avô, Candido, que foi subdelegado do Distrito do Lageado no início da década de 1930 e o Osório Silva, delegado regional de Santo Antonio da Platina. Isto não se discute. Discutíveis são as razões e eventos que levaram a isso e a totalidade da versão contada pela boca de meu pai e narrada através do texto construído por mim.
Como este blog é uma “obra aberta”, estamos em construção. Entre as próximas postagens estará a estrutura ou projeto do trabalho acadêmico. Por enquanto o assunto está apenas sendo introduzido e os elementos localizados. Disponho de algumas referências sobre a memória e sobre o recorte geográfico/temporal que está sendo abordado, mas ainda é pouco. Não só aceito, como na verdade fico muito grato por sugestões que vierem dos prováveis leitores.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

origens

Candido Batista de Souza, até hoje chamado de Candinho, nasceu na manhãzinha do dia 7 de Maio de 1918, poucos meses antes do final da I Guerra Mundial. O lugar era um bairro rural de Santo Antonio da Platina chamado de Ubá, formado por imigrantes oriundos do estado de Minas Gerais, da região da cidade de mesmo nome. Candinho é o caçula de cinco irmãos sobreviventes (pela ordem: Aurora, a primogênita, Daniel, Valdemar, Edward – Edevarde ou Ides – e Candinho), filhos de Candido Bonifácio de Souza e Etelvina Batista de Souza. Ainda fazia parte da família o Véio Dito, um ex-escravo que, pelo que se pode deduzir, não viu nenhuma diferença entre as condições de antes e depois da Lei Áurea e continuou com a família com a qual sua própria família já convivia havia muitas gerações. Candido e Etelvina ainda tiveram outros filhos: pelo menos dois meninos entre Edward e Candinho e uma menina quando Candinho contava com, aproximadamente, dois anos – a pequena Eurodites, que não viveu mais que algumas semanas, sendo enterrada pelo Véio Dito num canto distante da propriedade que possuíam no Ubá.
No sítio eles plantavam cana, criavam porcos, galinhas e uns bois de tiro que serviam, principalmente, para transportar a cana cortada desde o canavial até o engenho vertical – tracionado pelos mesmos bois – que espremia a garapa em cochos de madeira que eram então levados ao barracão anexo e derramados em grandes tachos de cobre ajeitados sobre fogueiras alimentadas a muita lenha seca, e ficava horas apurando até virar rapadura, o principal produto do sítio, que saía dali em tijolos de até 1 kg de peso embrulhados dois a dois em palhas de milho e empilhados sobre os carros de boi até as cidades de Jacarezinho e Santo Antonio da Platina, onde era então comercializada.
Um dia, em 1923, quando Candinho estava com 5 anos, o sítio do Ubá foi vendido e eles se mudaram para Santo Antonio da Platina, onde o patriarca Candido tinha entrado com algum dinheiro, mais os bois de tiro e seu espírito empreendedor, como sócio numa serraria com um tal Sr. Fernandes (de quem Candinho não sabe mais nada), que havia investido a maior parte do capital enquanto Candido ficava encarregado do trabalho de localizar as árvores no meio da mata, providenciar para que fossem derrubadas, serradas no local em pedaços de tamanho adequado para o transporte, embarcadas nas carretas e transportadas até a serraria, onde a madeira era desdobrada em tábuas e outras peças – dependendo da qualidade da madeira e o fim para o qual se destinavam – que seriam, posteriormente, utilizadas nas construções da região. Para realizar esse trabalho Candido contava com o Véio Dito, seus carros e suas juntas de bois e com alguns homens contratados, fortes e hábeis no uso de machados e serras.
Foram morar num anexo da própria serraria adaptado para servir como casa da família. A sociedade se fez, principalmente, para que fosse comprado e instalado na serraria, um enorme vapor de muitas toneladas que movimentaria todo o complexo a partir de então. Foi enquanto moravam ali que Candinho foi à escola pela primeira vez na vida, e onde o Véio Dito, numa certa manhã de 1925 apenas não acordou mais. Foi por esses mesmos dias que, do vapor da serraria foi puxado, pela primeira vez na cidadezinha, um fio que acendeu algumas lâmpadas incandescentes em logradouros públicos e numas poucas residências, fato que, segundo Candinho, a história jamais registrou.
Em 1925 Candido vendeu sua parte no negócio ao seu sócio Fernandes e montou um pequeno armazém de secos, molhados, ferragens, tecidos, enlatados e quase tudo o que existia para ser comercializado naquelas época e região. Foi morar diante da praça que tinha a delegacia construída no meio, vizinho de cerca com o lendário (ao menos ali e naqueles dias) pistoleiro Diogo Apolinário Correia. Ficaram nessa casa, no centro de Santo Antonio da Platina, até que se mudaram para o Lageado, três anos depois. Ali conheceram o cinema mudo, onde o alfaiate da cidade tocava violino durante as exibições dos filmes, muitas vezes acompanhado por um clarinetista da banda Lyra Platinense; ali Candinho aprendeu o que é um eclipse quando, numa noite de lua cheia, os moradores locais saíram às ruas atirando para cima, estourando fogos e fazendo a maior barulheira para espantar o monstro que estava devorando o satélite; viu, em frente a sua casa, a movimentação de umas tropas de molambos que estavam engajadas na revolução dos tenentes e, na casa paroquial, a umas duas quadras de distância, quando o legista de Jacarezinho abriu o peito do sargento Jorge, morto na noite anterior e, depois de mexer um pouco dentro do tórax do defunto exibiu, para as dezenas de pessoas que se aglomeravam em torno da mesa, o coração do homem pendendo de seu dedo mindinho enfiado no buraco da bala certeira do assassino. Lá ele viu o primeiro automóvel de toda sua vida, e soube que a São Paulo/Paraná Railway havia chegado até bem perto, onde foi construída uma estação chamada Nova Platina, a partir de onde a ferrovia se bifurcava, lançando um ramal para o sul, até a região dos campos gerais, e outro ramal para oeste, entrando pelo norte do Paraná onde disseminaria cidades nos anos seguintes.
Em 1928 eles se mudaram para o Patrimônio do Lageado – depois município de Carvalhópolis e, depois ainda, Abatiá – pertencente a Santo Antonio da Platina, onde ficariam até agosto de 1937.

introdução

Era 1º de Janeiro de 2000. Depois do farto almoço, sorvete e cafezinho na casa de uma tia, irmã de minha mãe, nos sentamos na varanda, eu e meu pai, Candinho, e começamos a prosear. Ele já tinha 81 anos de idade, tinha vivido a maior parte do século XX, sofrido um AVC que tinha deixado todo mundo assustado alguns anos antes, e passado por duas cirurgias delicadas para desobstruir as artérias carótidas dos dois lados do pescoço – sem o que o risco de um novo derrame seria quase inevitável – e sobrevivido a tudo quase sem sequelas (parece que foi só depois disso tudo que ele começou a envelhecer de verdade). A conversa principiou sobre aquele ano cheio de zeros que estava então começando (era o primeiro do terceiro milênio ou o último do segundo?), sobre o ditado profético que era voz corrente nas antigas (a dois mil chegará, de dois mil não passará), como se imaginava que seria o mundo no novo século, no novo milênio que ia começar... Lá pelas tantas, Candinho começou a falar de sua infância no bairro do Ubá e em Santo Antonio da Platina, a adolescência e juventude no Patrimônio do Lageado, da morte de seu irmão Valdemar e da consequente mudança da família remanescente para Cornélio Procópio. Enquanto ele desfiava suas memórias, uma idéia que já existia como semente dentro de mim desde anos antes começou a tomar forma: eu iria escrever um livro contando a história de meu pai.
Começamos por aqueles dias mesmo e, de lá para cá, lá se vão 10 anos e alguns meses, mais de 20 horas de depoimentos gravados – parte em minicassete e parte em WAV – e pouco mais ou menos que 200 laudas de texto em diferentes graus de acabamento. Neste ano de 2010, quando Candinho completou 92 anos de idade deve ser a reta final do livro, pois meu pai que, de acordo com suas próprias palavras, já está no lucro, não vai rejuvenescer depois de nonagenário, e eu quero que ele veja, toque e leia a história de sua vida contada por seu filho do meio.

O texto que foi escrito até agora, com o objetivo de compor a biografia de meu pai, não se preocupou primordialmente com a exatidão histórica, mas sim com a manutenção do sabor e do colorido únicos de suas narrativas e casos. Mas não me dei uma liberdade total para escrever – ocasionalmente construí algum diálogo, uma descrição psicológica, juntei duas ou mais versões de alguns casos numa só, escolhi entre dois ou três nomes de personagens sobre os quais Candinho, tantas décadas depois, já não tem certeza absoluta, dramatizei uma ou outra passagem com vistas a um efeito literário, mas não “criei” coisa nenhuma, não retirei ou acrescentei nada que não fosse, no mínimo, plausível ou até mesmo provável – e o importante, no que diz respeito à construção de um trabalho de história, é que, no que se refere aos ciclos e fatos mais amplos onde a história de Candinho e sua família se inserem, não há nenhuma invenção em relação ao que a História conta, e tudo combina quase com exatidão. O estilo é apenas forma, licença literária, enfeite, carne – a espinha dorsal é a saga de meu pai e de sua família num período determinado, entre 1928, quando eles se mudaram de Santo Antonio da Platina para o Patrimônio do Lageado (depois município de Carvalhópolis e, depois ainda, Abatiá) e 1937 quando, após a morte de meu tio Valdemar, o que ainda havia restado da família mudou-se do Lageado para o distrito do km 125 da ferrovia que, ano seguinte seria elevado ao grau de município e batizado de Cornélio Procópio.
Este trabalho partirá de um ponto divisor de águas na história da família – a morte, numa emboscada descrita por Candinho, de meu tio Valdemar, no Patrimônio do Lageado, na noite de 22 de Maio de 1937. Sem colocar em dúvida a versão apresentada por meu pai, pode ser que as coisas não tenham acontecido exatamente da forma que ele as descreveu, até porque a memória de um indivíduo, por melhor que seja, é falha e traiçoeira, e pode acrescentar ou retirar dados relevantes a um determinado evento – mas isto não é significativo para o fim a que este trabalho se propõe, que é o de investigar as relações de poder que culminaram nos fatos ocorridos na data citada. Serão utilizados alguns trechos do livro em preparação, referenciados por estudos de diversas disciplinas das ciências humanas (história, geografia, sociologia) sobre a expansão cafeeira, a estrada de ferro SP/PR Railway, que estava entrando pelo norte do Paraná na mesma época abordada por este recorte, as alternativas econômicas que se apresentavam para os que não eram grandes produtores, as relações de poder e influência naquele meio rural que estava nos primórdios de sua urbanização.