segunda-feira, 23 de maio de 2011

O Véio Dito

O Véio Dito já tinha vivido muito tempo e visto muita coisa. Ele era alguém que convivia bem com a vida e conhecera a morte bem de perto, das formas mais diferentes e em inúmeras ocasiões. Nem mesmo ele tinha certeza de sua idade, e era quem menos se importava com isso. O que valia mesmo era fazer bem feito o seu trabalho – o mais era bordado. Dito nunca que falhara com sua obrigação.

Cândido saia a visitar as propriedades da região, principalmente aquelas em que estavam sendo abertas roças, para negociar a compra das madeiras e tratar o corte. Fazia os pagamentos numa visita posterior, depois do processo todo concluido. Era no retorno de Cândido após a negociação que entrava em cena o Véio Dito, responsável por conduzir a carreta de bois até o local determinado, escolher as árvores em pé e dirigir a operação de derrubada e o corte das toras de acordo com as necessidades da serraria e as possibilidades de transporte e colocação delas nas carretas. Dito comandava a movimentação de meia dúzia de homens: enquanto uns levantavam a tora, outros a encaixavam nos dentes ou degraus das rampas que subiam para a carreta, escoravam-na bem com grandes cavacos de madeira e repetiam tudo de novo, as alavancas levantando, os homens empurrando e ajeitando os troncos, até que finalmente a carga estivesse deitada sobre o transporte. Era uma função que demorava muitas horas seguidas, pois os lenhadores tiravam às vezes peças sólidas de três ou quatro metros cúbicos de madeira de lei, e cada tora carregada significava uma operação complexa e arriscada. Não raro um trabalhador quebrava a perna, deslocava um ombro ou rompia um tendão. Todos conheciam a triste história de algum infeliz sobre quem uma tora rolara, esmagando-o. Um destes, por coincidência, também se chamava Dito, mas nada a ver com o Preto Velho. Esse um era branco de olhos verdes, e teria pouco mais que vinte anos quando da fatalidade... O véio, que era forte como um touro, mas já nem tanto quanto em décadas passadas, impunha ritmo e constância ao trabalho como se batesse num tambor, comandava a montagem da carga sobre o carro e fazia as últimas amarras. Depois conduzia a madeira até a serraria, onde ainda coordenava a operação de descarga sobre a esteira rolante que levava à irresistível serra vertical.

Naquela manhã fresca e luminosa do Ano do Senhor de 1924 o Véio se foi deste mundo muito simplesmente por parar de funcionar. Talvez fosse começo de Abril, e ele morreu em paz e silêncio, sossegada e discretamente como sempre vivera. Dia anterior tinha puxado bem uns seis metros cúbicos de madeira para alimentar a serra. Lavou-se depois da função, alimentou-se e foi se recolher... Talvez tenha começado a sonhar, como de outras vezes, que flutuava sobre a cobertura de seu puxado – e depois mais alto e em movimento, sobre a casa da família, o barracão da serraria... Viu os bois no pasto e, para lá do pasto, o canavial... Então, subindo mais alto e indo mais longe ainda, flutuou, como que levado por um vento, além do terreno em volta da serraria, sobre os matos de onde puxava toras. Lá de cima, viu no horizonte o sol se acendendo, vindo desde o outro lado do mar onde ele nunca tinha estado, mas do qual se lembrava com uma memória herdada dos pais, dos avós e de mais longe ainda, desde quando o primeiro deles tinha sido trazido até estas terras desde aquelas terras distantes, do outro lado do mar, onde estavam suas raízes... Talvez tenha resolvido naquela madrugada que não voltaria mais, que valia mais a pena continuar voando levado pela correnteza do sonho através do oceano, na rota contrária à dos navios em que os traficantes tinham trazido seus ancestrais da África, até as origens de que ele não tinha nenhuma lembrança ou referência consciente... Talvez tenha pensado, com aquele pensamento estranho e vago de sonho, que poderia ir agora e definitivamente tão longe que não valeria a pena retornar... E assim se encerrariam todas as gerações de servidão que tinham culminado no Véio Dito: ele seguiu o sonho e não retornou mesmo, nunca mais. Não acordou em sua cama, nem ninguém dos que ficaram soube que tenha acordado em algum lugar. A família toda chorou por ele um choro sincero e sentido, e o velho corpo foi sepultado em terreno consagrado, cristão batizado que era.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Algumas daquelas lembranças de infância que nunca se apagam...

As canas assadas

Em Santo Antonio da Platina, foram morar numa parte do próprio barracão da serraria, onde tinham sido erguidas paredes divisórias e o espaço transformado numa casa com uma sala pequena, cozinha e dois quartos com camas: um maior, do casal, e outro menor, da primogênita Aurora. De manhãzinha, depois das noites de frio, quando os meninos estendiam um lençol sobre o algodão guardado na tulha pegada à casa e se aninhavam nele meio enroscados uns nos outros e cobertos com seus cobertores, quentinhos e confortáveis, eles, ainda meio sonados, iam pegar umas canas que havia para sustento dos bois na propriedade e assavam as varas em fogueiras feitas com os cavacos e gravetos que sobravam da serraria, até que as cascas torravam e estouravam. Depois descascavam e chupavam os grandes gomos quentes e doces.

Candinho lava os pés sozinho

Uma noite, saíram Cândido, Etelvina e Aurora, e o caçula Candinho ficou só com os irmãos homens. As horas corriam e os mais velhos não retornavam. O pequeno então empurrou uma cadeira até o barril cheio de água do poço, trepou nela com a caneca na mão, encheu-a e levou-a até a grande chaleira de ferro que estava sobre a chapa do fogão de lenha perpetuamente aceso. Avivou a chama encostando mais algumas achas e voltou para o barril. Foram três viagens até encher a chaleira. Depois, quando a água já estava quente, ele tirou a pesada chaleira de cima do fogão e derramou o conteudo numa baciazinha de folha; temperou a água, lavou seus pés bem lavados e, após secá-los, caminhou nos calcanhares até a escada de madeira que levava à tulha cheia de algodão onde dormia com os outros irmãos, subiu e se ajeitou para passar a noite. Minutos depois ouviu que os pais e a irmã chegavam, e desceu para lhes contar a proeza realizada, o desafio que havia vencido sozinho, sem se queimar nem derramar nenhuma gota: um serviço bem feito, talvez o primeiro de sua vida. Cândido disse que ele era inteligente, Etelvina beijou-o no rosto e Aurora lhe deu os parabéns. Candinho dormiu bem e feliz nessa noite.