quinta-feira, 22 de setembro de 2011

histórias e personagens

São Paulo/Paraná Railway

1925, a ferrovia estava chegando perto dali. Daniel conseguiu trabalho como vendedor de balcão no armazém que fornecia mantimentos para os trabalhadores. A estrada de ferro avançava a partir do entroncamento de Marques dos Reis, no estado de São Paulo, com destino aos Campos Gerais onde encontraria com a linha que subia desde o Rio Grande do Sul. Daniel acordava muito cedo, saía ainda noite alta, por volta das quatro da manhã, e seguia a pé até a estação Nova Platina, a última onde a linha havia chegado e de onde a linha que chegava do estado vizinho se dividia em duas, lançando um ramal para o centro do estado e outro para oeste, pelas brenhas do Norte do Paraná, região de densas florestas cheias de boas madeiras, terra fértil e água abundante, pontilhada aqui e ali com povoados, pequenas propriedades, grupos de índios, grileiros, rotas de tropeiros, um minúsculo destacamento militar na Vila de Jathay, lá na borda do Rio Tibagi, uma ou outra missão religiosa... Talvez não exatamente nessa ordem de colocação ou importância, mas com todos esses elementos ali presentes. Daniel não sabia de nada disso. Ele trabalhava duro o dia todo naquele balcão, e também recebendo mercadorias, fazendo pagamentos, limpando, organizando o estoque, tudo o que se fazia num entreposto daquele tipo. O comércio era uma concessão da São Paulo – Rio Grande Railway (tocada por alguém que Candinho não sabe dizer quem), empresa de capital misto ligada à Companhia de Terras do Norte do Paraná, subsidiária da Paraná Plantations que estava então começando a executar um projeto de expansão por aquelas novas terras (quase) sem dono e que viria a adquirir o controle acionário da empresa pouco tempo depois, em 1928. Bem ali, no ponto marcado pela estação e pelo armazém, começava o ramal que penetrava pela nova região, que estava nos primórdios de sua colonização organizada, e disseminaria, ao longo da linha, pequenos povoados que se tornariam, nos anos futuros, grandes cidades, chegando a Londrina (que ainda nem sonhava em existir) em mais uma década e depois ainda a Maringá, Cianorte e mais além... Era a base de uma ampla exploração agrícola e imobiliária dos ingleses, que tinham enormes interesses naquelas terras. Comentava-se, já desde o século anterior, antes mesmo da Guerra do Paraguai, que o objetivo deles era fazer uma ligação ferroviária entre os Oceanos Atlântico e Pacífico, para estabelecer uma linha direta entre os negócios do Reino Unido no Ocidente e no Oriente, economizando nas despesas do transporte naval e ainda mantendo o monopólio sobre a construção de estradas de ferro na América do Sul. Para esses fins, a ferrovia que penetrava o Norte do Paraná tinha um papel fundamental, pois já começava a apontar diretamente para a fronteira oeste do Brasil e para o Oceano Pacífico, do outro lado do continente.

Dr. Cunha - dentista, fabricante de sorvetes
e músico amador que tinha um terno só

Frequentavam o consultório do Dr. Cunha, dentista, que, quase certamente era da mesma família do professor da escola e talvez nem fosse formado. O homem tratava cáries e dores de dente, mas a clientela era pequena, então ele procurava aumentar sua renda fabricando sorvete e guaraná. As grandes barras de gelo seco para o fabrico do sorvete vinham de Ourinhos, a 50 km de distância, em caminhões, fechadas em caixas de madeira com pó de serra socado misturado com sal para manter a temperatura. As barras eram picadas e colocadas nas batedeiras de madeira movimentadas à mão. Quando iam ao consultório para tratar dos dentes, Os filhos de Cândido (Candinho lembra-se muito bem disso) ajudavam o Dr. Cunha a mover as batedeiras de sorvete. Também produzia guaraná, o Dr. Cunha. Após fazer toda a composição do refrigerante – o xarope doce, a água e mais um ou dois segredinhos – e engarrafá-lo, um momento antes de colocar a chapinha guarnecida de uma fina lâmina de cortiça na boca da garrafa, o fabricante enfiava por ali um bico de gás que espalhava bolhas naquele líquido e depois tampava imediatamente para que o gás não escapasse.

Por ali todo mundo sabia que quem toca violão é sempre um pouco malandro, quando não desocupado. Não era bem o caso do dentista Cunha, que era trabalhador mas tinha só um terno além da roupa de trabalho, tocava violão, e cantava nas varandas em noites frescas. Cantava bem o danado, era bom de prosa e ninguém podia encontrar um isso que fosse que o desabonasse, a não ser o fato de ele não ter dinheiro, como, aliás, todo mundo por ali. Cantando e tocando a viola ele amealhava amizades e arrancava suspiros das mocinhas. À noite, depois das sessões de viola e cantoria, ele entrava em sua casa, lavava cuidadosamente o terno e deixava-o secando até depois da lida do dia seguinte, quando então o passava bem passado, os bolsos pelo avesso e todos os vincos nos lugares certos, vestia-o, pegava, orgulhoso, seu instrumento e saia para mais uma noitada na varanda, cantando Catulo da Paixão Cearense e outras modas da moda.

No carnaval de 1926, enquanto as pessoas saiam fantasiadas na rua em grupos, cantando marchinhas e levando água, farinha, e outras coisas grudentas e/ou malcheirosas para guerrear, o violeiro saiu todo orgulhoso e altivo com sua fatiota, e, antes de caminhar 200 metros, foi emboscado por um grupo de rapazes que o encharcaram de água, jogaram farinha, quebraram ovos e esmagaram tomates podres na sua roupa. De nada valeram os protestos e pedidos do pobre rapaz, e aquela noite de carnaval terminou, para ele, antes de começar. Profundamente atingido em sua vaidade e orgulho pela lambança, ele voltou para casa melecado e indignado até a alma. Tirou o terno, encheu a tina de água e começou a lavar...