quinta-feira, 28 de outubro de 2010

22 de Maio de 1937

Candinho: Na época em que morávamos no Lageado o papai era subdelegado nomeado pelo delegado regional de Jacarezinho que era a comarca à qual pertencia o município de Santo Antonio da Platina, e pertencendo ao município de Santo Antonio da Platina o patrimônio e distrito judiciário do Lageado, criado pelo governo de Getúlio Vargas em 1929, que era onde nós morávamos. Era delegado regional, se não me falha a memória, Dr. Alcântara, em Jacarezinho, que era quem supervisionava a delegacia de Santo Antonio da Platina e a subdelegacia do Lageado. Tinha chegado recentemente, oriundo do estado de São Paulo, e sido nomeado delegado de Santo Antonio da Platina, o Osório Silva, que se casou com nossa prima Benedita, sobrinha de meu pai. Como meu pai era altivo e não gostava de receber ordens e o Osório Silva era um tipo mandão, prepotente e autoritário, inclusive com os policiais que o acompanhavam nas diligencias...
... A subdelegacia do Lageado era vinculada à delegacia regional de Jacarezinho, que era a comarca. Quando havia problemas a serem resolvidos referentes à subdelegacia do Lageado, meu pai não procurava o Osório e sim o delegado regional em Jacarezinho, com quem trocava informações sobre os problemas oriundos da...
... Em alguns casos o delegado regional dizia ao meu pai: “é, você pode tratar desse assunto com o delegado de Santo Antonio da Platina”, e meu pai não queria, dado a indisposição já existente entre eles, dar satisfação ao Osório Silva, mesmo ele sendo casado com a nossa prima. O Osório Silva ficou magoado, começou a fazer pressão política e pessoal, e não fazia questão de disfarçar que tinha mesmo uma diferença com o subdelegado, meu pai. Em pouco tempo, dada a divergência, meu pai pediu demissão e deixou o cargo... Não, ele não chegava a ameaçar, mas o que acontece é que com toda a pressão e indisposição... O Osório pressionou bastante o delegado regional de Jacarezinho para que substituísse papai na subdelegacia do Lageado...
... Foi nomeado o Jango como substituto do meu pai, indicado pelo Osório Silva. Em decorrência dessa nomeação é que ele passou a... – não perseguir diretamente meu pai e meus irmãos –... Mas demonstrava mau-humor e má vontade... Até que, na noite de 22 de maio de 1937...


22 DE MAIO DE 1937

Ouviam o noticiário. O rádio estava ligado na Inconfidência, de Minas Gerais. Passavam talvez vinte e poucos minutos das nove da noite de vinte e dois de maio de 1937, e Candinho tinha completado dezenove anos quinze dias antes. Dali a pouco iriam pegar o carreiro de uns seis quilômetros de volta pra casa, no sítio da família, só terminar de ouvir o que estavam falando na rádio... O bar já tinha sido de Cândido, então era tudo familiar: um espaço quadrado de uns dez metros, onde tinha uma sorveteira e algumas prateleiras no fundo. Candinho estava prestando toda sua atenção ao noticiário, mas a partir daqui ele não se lembra mais do que é mesmo que ouviam. Havia pessoas dentro do bar, mas Candinho não se lembra do que aconteceu com os outros. O objetivo era os irmãos, filhos do ex-subdelegado. Pode ser que Candinho estivesse mais perto do fim do balcão, mas a certeza é de que havia um desses baleiros de vidro giratórios bem ao lado de onde estava encostado. Ele não estava distraído, mas, mesmo assim, o movimento o pegou de surpresa. Reconheceu Jango e Elias Carvalho que lideravam os bandidos. Os jagunços pararam, meio passo para dentro, em todas as portas do bar, Jango declarou em alto e bom som que estava ali para desarmar quem quer que estivesse armado e, ato contínuo, começaram a atirar. Os irmãos Daniel e Valdemar estavam ali ao lado, e ele percebeu que Daniel soltava um gemido e levava as duas mãos à barriga enquanto sua cara se contorcia num esgar. Viu que Valdemar saía correndo pela porta da esquerda, e supôs que ele estivesse com o revólver Smith & Wesson calibre 32 que Cândido havia deixado com os irmãos para que se protegessem. Viu que os jagunços penetravam no bar e num instante, como um serelepe, não sabe bem como, estava já do outro lado do balcão enquanto o baleiro estourava com o tiro e as balas doces choviam sobre sua cabeça e pelo chão, misturadas com cacos de vidro. Ficou ali abaixado respirando forte e não viu mais o que aconteceu até que os estampidos cessaram. Candinho só ouvia sua própria respiração ofegante e os gemidos de dor de Daniel que se contorcia no chão, sangrando, baleado no abdome. Arriscou uma olhada para o lado de fora do balcão e não viu nada. Ouviu uns latidos distantes e sentiu a barriga gelada e a nuca dura. Sua cabeça estava clara como se tivesse acendido uma luz dentro dela. Saiu de seu esconderijo e viu Daniel, ferido e sangrando, que se erguia com dificuldade. Foi indo para a porta da esquerda, por onde Valdemar tinha saído, um pé depois do outro, e, de repente, estava na noite, do lado de fora. Viu o corpo do irmão, abatido a seis ou sete passos da porta, caído no chão de costas; abaixou-se e puxou-o pelo braço, pensou que estava dormindo ou desmaiado, chamou-o pelo nome e fez que tentou levantá-lo quando viu, num golpe de vista, dois dos pistoleiros encostados a uma cerca do outro lado da rua. Os pistoleiros também o viram e apontaram suas armas. Então Candinho correu como nunca antes em sua vida, alucinado e desorientado, sem saber para onde ir. Os tiros passavam perto dele e explodiam na poeira à sua frente...
... A Cesarina, irmã do Vicente Lino, que era o padrinho de crisma de Candinho, e dono de uma pensão que ficava alguns metros rua abaixo, estava indo para a cama quando escutou os tiros e a gritaria. Foi até a porta da rua, entreabriu-a e olhou para fora, à espera de que alguma coisa acontecesse. Após mais alguns intermináveis segundos de silêncio, ela escutou mais gritos e tiros, e viu que Candinho descia a rua, correndo feito louco... Candinho viu que a porta da pensão do padrinho estava entreaberta e ouviu chamarem o seu nome lá de dentro. Entrou correndo, encolheu-se num canto e ficou ali até ter certeza de que tinha passado. Foi uma longa noite em claro.