quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Candinho, uma saga

Grandes Ciclos I
Ubá e Sto. Antonio da Platina
Os pássaros já estavam acordando e principiavam a alegre algazarra naquela madrugada fria de sete de maio, quando Etelvina Batista de Souza, cabocla rija de pouco menos que trinta anos e forte sangue mineiro, desfez a careta, mas continuou bufando, suada e vermelha, e, com a ajuda de Rita, a irmã mais nova, e sob a orientação atenta da vó Inácia, terminou de parir o último de seus filhos que, passadas mais de nove décadas, ainda estaria vivo e lúcido para contar sua história. O rebento era um varão brigador e de saco roxo, fruto de seu ventre com a semente de Candido Bonifácio de Souza, homem de trinta e poucos, braços e caráter fortes, irmão de Zé Coelhinho e filho de José Coelho Villas Boas de Souza e Inácia de Souza, chamado de Candido Coelho por conta do sobrenome familiar que não usava. Os dois eram oriundos do interior das Minas Gerais, Região de Ubá, e moravam então no bairro rural também chamado de Ubá, colônia de mineiros no norte do Paraná, município de Santo Antonio da Platina, próximo à fronteira com o estado de São Paulo. Candido ainda ficava nervoso com o nascimento de seus filhos, se bem que já nem tanto mais: era a oitava vez que isso acontecia, e a dois deles Deus tinha chamado para Si ainda anjinhos. A este filho que então nascia ele daria o seu próprio nome, quase como se fosse a expressão de um desejo inconsciente de perpetuar-se, como que adivinhando que aquele pequeno recém nascido o levaria por tanto tempo, através de épocas e mundos que lhe pareceriam inacreditáveis ainda que vivesse neles... Após o parto, mãe e criança limpas e descansando, ele se viu sozinho durante um longo instante do lado de fora, amanhecendo ainda. O sol, primeiro luz vermelha parece que sangrando o horizonte, depois claro e absoluto, luz dourada atravessando umas nuvenzinhas delicadas e matizando o céu de tons de azul, lilás, rosa, dourado – e então o dia de todas as cores, com a predominância do verde... Candido respirou fundo e olhou para os campos que despertavam, a linha da mata mais adiante, ouviu os ruídos do dia que começava, a passarada, a balbúrdia de seus filhos ali por perto e sorriu: Sentiu que a vida, apesar dos muitos pesares, de vez em quando ainda surpreendia com uns momentos que não tinha nada o que explicar nem reparo nenhum a fazer... Corria o ano da graça de 1918. Na Europa, a primeira guerra mundial comia solta, mais próxima de seu final do que então se poderia imaginar. Nesse dia nascia Candinho.

E vinha chegando, lá das bandas da sua casa, o concunhado Francisco Arantes, marido de Rita, conhecido por ali pelo apelido de Chico Terto, todo alegre, balançando os braços e falando alto:
- Bom dia, compadre Coelho! – E meus parabéns! Que Nossa Senhora da Imaculada Conceição tenha dado uma boa hora para Dona Etelvina. Venha daí um abraço.
- Obrigado compadre – disse Candido enquanto o contraparente aplicava-lhe os tradicionais três tapinhas nas costas -. Comadre Rita foi de grande valia.
- Vamos entrar ali na sua casa – disse Chico Terto mostrando-lhe uma cesta -. Tenho aqui umas coisas para a mãe e para a criança e uma coisa para nós.
Rita estava na cozinha fervendo lençóis e fronhas; Aurora, a filha mais velha sobrevivente, nascida em 1908, escolhia feijão na mesa enquanto o pequeno Edward, caçula destronado, brincava ali por perto no chão de madeira. Daniel e Valdemar, respectivamente com oito e seis anos já estavam em algum lugar quase longe, mas nem tanto, explorando o mundo entre as ruas de café e as roças de milho. Vó Inácia, mãe de Candido, estava no quarto com a nora e o neto. Terto colocou a cesta na mesa e tirou dela panos dobrados e embrulhos, um embornal com ervas, um saco de algodão com um grande pão fresco ainda cheirando muito bem, uma lata de biscoitos sortidos, e, por último, um garrafão de cinco litros, faltando aproximadamente dois terços, de vinho tinto.
- Vamos tomar um copo em comemoração, compadre. Venha você também, Rita, e traga os copos.
- Beber a essa hora da manhã, Chico? Logo eu, que quase nunca bebo em hora nenhuma.
Rita já chegava, sorridente, com os copos. Terto insistiu:
- Vamos, compadre Coelho! Afina o sangue e deixa a cabeça mais leve – Além do que é benção na certa brindar à saúde do recém nascido.
     Rita já tinha enchido os copos e os distribuiu. Candido pegou no seu, aproximou-o do nariz e sentiu o odor forte e gostoso. Ergueram os copos e Terto brindou:
- Ao menino, para que seja trabalhador e honesto.
- Ao meu filho Candinho, para que tenha uma cabeça boa e dê boa semente.
- Ao pequeno, para que tenha uma vida longa e valiosa – concluiu Rita.
Bateram os copos e beberam à saúde de Candinho.

Reintroduzindo...

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Quando os buques de guerra dos navegadores nórdicos, ornados com carrancas de dragão ou serpente marinha, velas quadradas, as fileiras de remos e os escudos redondos protegendo as amuradas, apareciam no horizonte de volta de suas campanhas, a comunidade se mobilizava para preparar o banquete. O Hall era limpo, a grande mesa circular montada, a lareira acesa com boa lenha, o rei vinha vestido com seus melhores trajes e ataviado com todos os emblemas de sua posição, tomava lugar entre as colunas que o distinguiam e dava a ordem para que a festa acontecesse. Eram oferecidos sacrifícios a Thor ou a Odin. Músicos atacavam seus instrumentos, a comida era servida, os homens comiam, bebiam, cantavam e faziam muito barulho. Não sei se havia uma ordem para essas coisas, ou se em todas essas festas todas elas aconteciam, mas havia um momento solene, quando era exigido silêncio e atenção aos comensais, e este era quando o bardo que sempre acompanhava as expedições ia narrar a saga.

Esses eram povos que viviam muito ao norte, num clima inóspito e numa terra de poucos animais e escassos recursos. Essas culturas desenvolveram-se, principalmente, sobre a guerra e a pilhagem. Suas frágeis embarcações atingiram o Mediterrâneo e o norte da África; passaram além da Groenlândia e aportaram onde hoje é a América do Norte, e quem sabe onde mais eles chegaram. A saga era a narrativa heroica, idealizada, desses acontecimentos: os meses no mar, a sangueira da guerra, a crueldade da conquista, a morte por hipotermia, desinteria, tétano, no fio de um machado, na ponta de uma lança, levado pela tempestade; a miséria física e o risco daquela frágil estrutura de madeira ser despedaçada pelos elementos da natureza, tudo transmutado em signos de glória e exaltação. A saga aproximava os homens dos deuses. A ação humana adquiria um significado no teatro cósmico, onde as forças da ordem e do caos (fogo contra gelo) combatiam umas com as outras, e os guerreiros que morriam honrosamente nas batalhas passavam os dias em guerras recreativas e as noites em festins com os deuses e as Valquírias no grande Hall de Asgard. Todos aguardando o advento do final do universo conhecido, quando então se daria a última de todas as batalhas, o Crepúsculo dos Deuses, o Ragnarok...

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Saga. A narrativa heroica de uma jornada, uma campanha ou expedição. Aqui, no nosso caso, de uma vida humana que já dura mais de noventa anos. Candinho nunca foi um guerreiro aos moldes daqueles grandalhões ruivos do norte. Ele sempre foi um sujeito miúdo, cabeça grande, quase frágil (agora, aos noventa e dois, quase transparente...), magrelo na juventude, gorducho entre os quarenta e os sessenta e poucos, magrelo de novo agora velhinho, e sempre de cabeça grande, em muitos sentidos. É uma saga diferente daquelas dos navegadores e guerreiros do norte gelado, acontecida numa terra quente e fértil, ao sul, próxima ao Trópico de Capricórnio, em meio a florestas exuberantes que estavam se acabando pela ação humana e cidades que estavam nascendo das terras férteis, adubadas com muito suor e promessas de progresso.

Norte do Paraná, décadas de 1920 e 30. Do nascimento, em 1918, até a morte de Valdemar, em 1937, o primeiro grande ciclo da vida de nosso heroi/sobrevivente. Candinho nunca participou de guerras, nunca matou ninguém, nunca navegou muito longe, não descobriu terras, não foi rei nem general. Nada de extraordinário, mas tudo de extraordinário. A narrativa heroica da vida de um homem como qualquer outro e não tão longe assim no espaço ou no tempo.

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Quem já esteve passeando por este blog e leu as postagens mais antigas, sabe que um dos principais objetivos desta mídia aqui é funcionar como o laboratório onde será feita a montagem de um material acadêmico para apresentação de Trabalho de Conclusão de Curso em História pela Universidade Estadual de Londrina. Mas o objetivo principal é mesmo prestar honras a um bravo camarada que conheço desde que me entendo por gente e que ainda se encontra por aí neste mundo. O trabalho acadêmico continua, em postagens/capítulos “marginais”, anotações “de pé de página” sobre história e memória, cognição, cultura e representações, os grandes ciclos da história recente do Brasil, do Mundo e do estado do Paraná, principalmente a região denominada de Norte Pioneiro no primeiro grande ciclo da saga, e o Norte Novo depois. Entre Santo Antonio da Platina e Londrina, passando pelo Lageado, depois Cornélio Procópio, Curitiba, Vale da Ribeira e Congonhinhas.

Vamos começar, a partir da próxima postagem, a publicar a Saga de Candinho, em ordem e cronologia.